O que leva ao continente gelado, de ambiente hostil ao homem e à flora, os olhos e as mentes de 50 mil cientistas de 63 países, reunidos em centenas de projetos? A resposta é simples: há algo de novo na natureza antártida além das consequências de fenômenos naturais extremos, provenientes ou não do aquecimento do planeta. A ciência precisa entender a influência dos polos no clima da Terra. Para tanto, o continente antártico, o mais limpo e puro do mundo, principalmente por não ter sofrido a ingerência do homem, ganha vital importância. A calota polar proporciona um sistema de alerta para as mudanças climáticas que estão ocorrendo no planeta.

Um consenso respeitável de cientistas mostra, com clareza, que a mudança climática é real. As calotas polares estão derretendo em ritmo mais acelerado do que se pensava. Em dez anos, a perda de gelo anual antártico aumentou em 75%. O déficit entre ganho e perda de neve foi de 192 bilhões de toneladas, só em 2006. Para se ter uma ideia, o derretimento revelado pelas imagens de satélite nesse período foi de 250 mil quilômetros quadrados, o equivalente ao território do Estado de São Paulo. A temperatura média, em alguns pontos do continente, esquentou 3ºC.

 

Apenas 2% do território antártico escapa da glaciação completa. O continente armazena 70% de toda a água doce do planeta.

No Ártico, a situação é pior, porque o aquecimento do planeta é maior no Hemisfério Norte do que no Sul, devido à presença de maiores massas de terra, condutoras de calor, e de maiores massas de água no hemisfério austral. No verão, a cobertura de gelo ártico diminui ao ritmo de 8% ao ano, há três décadas. Em 2009, a camada de gelo registrada foi 20% menor em relação à de 1979, uma perda de 1,3 milhão de km2, equivalente à soma dos territórios da França, da Alemanha e do Reino Unido. Se continuar assim, é provável que o gelo ártico suma até 2040.

Pesquisas norte-americanas e britânicas baseadas nos dados disponíveis desde 1880 apontam que a temperatura sobre a superfície da Terra está 0,6ºC mais alta, atualmente. As estimativas mostram que até 2100 ela estará 1,4ºC a 5,8ºC mais elevada. A controvérsia sobre se essas alterações provêm do aquecimento global gerado pelo homem ou são indícios de um novo ciclo climático, como tantos ocorridos na Terra, ainda não foi resolvida. Mas nenhum cientista duvida que o processo de industrialização global, desde o século retrasado, tem muito a ver com isso.

 

A Antártica é a região mais seca do planeta. O Estreito McMurdo não recebe uma gota d’água há 2milhões de anos

Também é o continente mais elevado, com altura média de 2.300 metros

Trata-se do lugar mais ventoso do planeta. Os ventos chegam a 320 km/hora

A plataforma de gelo antártico cobre 14 milhões de km² km de espessura % só 2% escapam da glaciação completa

Em 10 anos a perda de gelo antártico aumentou em 75%. 50 mil cientistas de 63 países desenvolvem projetos na Antártida. A grande questão é a mudança climática.

 

Gelo quente

As aparências enganam. À beira da calota glacial antártica tudo parece perfeitamente imóvel. Nada existe além de pedra e de gelo, até onde a vista alcança. Nenhum indício do fantástico movimento em ação. No entanto, o continente derrete. O aquecimento da temperatura do ar é mais sensível nos polos do que nas regiões temperadas. As geleiras avançam para o mar há milhares de anos, mas agora o fazem em outra proporção. “Chega a ser três vezes maior do que ocorria nos últimos cinco anos”, diz o climatologista neozelandês Kevin Treberth.

O colapso das geleiras traz excitação para alguns cientistas e depressão para outros. Espécies marítimas totalmente desconhecidas da comunidade cientifica têm surgido aos montões com o degelo. São novas espécies de crustáceos e de outros animais que só vivem em profundezas. Para se ter uma ideia da explosão de vida surgida recentemente, basta ler o relatório da pesquisadora alemã Angelika Brandt, do Museu de Zoologia de Hamburgo. Nos últimos anos foram identificadas mais de 1.400 espécies de ostracodes (crustáceos microscópicos), dos quais cerca de 800 nunca descritos pela ciência. Mas as descobertas não se resumem a animais diminutos. Uma lula colossal (Mesonychoteuthis hamiltoni), aparentemente egressa da ficção Vinte Mil Léguas Submarinas, do escritor Júlio Verne (1828-1905), emergiu há três anos dos mares antárticos, com 14 metros de comprimento e 450 quilos de peso.

Entre os pesquisadores alarmados estão aqueles que estudam plantas e microrganismos até então inexistentes, que passaram a colonizar o ambiente com resultados nefastos para o equilíbrio ecológico. Dessa maneira, porém ainda sem comprovação das causas, os veterinários chilenos lamentam a mortandade das focas, da espécie “lobo fino antártico”, registrada há três anos, no Cabo Shirreff.

É o continente mais frio: a temperatura média é de 16°C e a mínima 89°C em Vostok

A calota glacial antártica chega a ter 5 km de espessura e armazena 70 % de toda a água doce do planeta

Não muito longe, na Baía do Almirantado, onde funciona a estação brasileira Comandante Ferraz, a população de aves diminuiu bastante, principalmente a de pinguins, petréis e gaivotinhas antárticas, confirma Martin Sander, professor de zoologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, que há 25 anos estuda as aves da região. O mais atual desses alarmes foi dado em abril passado com a mortandade de dezenas de pinguins-imperadores, cuja morte foi atribuída a carrapatos jamais detectados no continente.

Pesquisas com os dados climáticos dos últimos 40 anos também se revelam catastróficas sobre a destruição da camada de ozônio. Essa camada de gás filtra os raios ultravioleta que podem provocar câncer de pele e catarata. A sua dissipação por produtos químicos, como o CFC emitido pelo gás do aerossol e por geladeiras antigas, implica riscos para as populações do Hemisfério Sul. A gravidade dessa poluição sobre o continente antártico é tamanha que o cientista norte-americano Robert Portmann, da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional (NOAA, na sigla em inglês), atesta a redução da camada “em até 99% em alguns momentos no inverno”.

O pesquisador brasileiro Heitor Evangelista, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, integrante das expedições brasileiras ao continente, afirma que o buraco na camada de ozônio tem consequências para o Brasil. “Ele influencia o clima antártico e contribui para alterações ambientais significativas sobre o manto de gelo e o gelo marinho. Por sua vez, isso influencia a biota terrestre e marinha, os ventos ao redor da Antártida e a frequência de ciclones, afetando o clima no Brasil.”

 

A população de aves, principalmente pinguins, petréis e gaivotinhas antárticas, está diminuindo em todo o continente.

Gelo furado

“Até onde você consegue olhar, a paisagem está como há mais de cem milhões de anos”, diz o geólogo Bruce Marsh, da Universidade Johns Hopkins (EUA). Essa é uma das razões por que glaciologistas do mundo inteiro são atraídos para esses campos nevados. O gelo é um fiel depositário da história climática. “A Antártida armazena respostas de como o clima mudou durante os anos”, reforça o cientista norte-americano Dave Marchant. As pistas sobre isso “estão apenas escondidas”, afirma ele.

No momento, “as amostras de massas de gelo nos revelaram uma variada gama da poluição”, revela David Walton, cientista da British Antarctic Survey. Seus gráficos mostram a curva de crescimento da taxa de chumbo na atmosfera desde a Revolução Industrial. A elevação mais rápida ocorreu quando se adicionou chumbo ao combustível dos carros. O gelo conserva também o rastro da poluição provocada pelos testes atômicos nas décadas de 50 e 60. Mais recentemente, pode-se detectar partículas de carbono derivadas dos incêndios de florestas tropicais.

O glaciologista brasileiro Jefferson Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, revela que as pesquisas podem ajudar a desvendar o fenômeno El Niño, que de tempos em tempos gera tempestades na costa do Pacífico e secas no Nordeste e na Amazônia. Em dezembro, Simões participará da segunda expedição brasileira ao interior do continente, com o objetivo de instalar uma base de instrumentos (desabitada) a 500 km do Pólo Sul.

O Brasil na Antártida

Quando o navio Barão de Teffé zarpou do Rio de Janeiro em 20 de dezembro de 1982, deu-se a partida para a primeira expedição oficial brasileira ao continente antártico. Em 6 de janeiro de 1983, nossos pesquisadores desembarcaram na Antártida. Embora o país não tivesse participado do Tratado Antártico, o Brasil foi aceito por adesão, em 1985. Como as primeiras pesquisas voltadas às áreas de Ciência da Vida, da Terra e da Atmosfera tiveram resultados significativos, o Comitê Científico de Pesquisas Antárticas convidou o Brasil a ser membro efetivo, no ano seguinte à sua chegada ao continente.

Nesse mesmo ano, os primeiros módulos (contêineres) da Estação Comandante Ferraz foram montados na Península Antártica, na Ilha Rei George. Durante o verão, de novembro a fevereiro, a base chega a abrigar 100 pessoas, entre pesquisadores e técnicos. Além da Comandante Ferraz, o Programa Antártico Brasileiro (Proantar) mantém quatro refúgios em outras partes da Península. “Presente há 28 anos na Antártida, a comunidade científica brasileira sonha em construir uma estação no interior do continente”, diz o professor Jefferson Simões, que ajudou a elaborar a proposta para o Ministério da Ciência e Cultura dar mais um salto de qualidade em projetos sobre o clima da América do Sul. Em dezembro próximo, 16 pesquisadores viajarão 2.500 quilômetros por terra, da Estação Comandante Ferraz até um ponto escolhido a 500 quilômetros de distância do Polo Sul Geográfico, onde instalarão uma base de instrumentos – um contêiner fabricado na Suécia, feito de fibra isolante de 2,6 metros de largura, com 6,3 metros de comprimento e 2,5 metros de altura. A instalação custou US$ 80 mil ao Proantar. Os cientistas ficarão 40 dias instalando a base, movida por geração solar e eólica, e depois retornarão à estação do litoral..

A Expedição Criosfera será a segunda missão brasileira ao interior da Antártida, depois da Expedição Deserto de Cristal, em 2009. “Esta é uma situação muito difícil de ser enfrentada”, diz Simões. “A região é inóspita, agressiva e muito perigosa, e por isso a base não será habitada.” No inverno, os ventos no Pólo Sul são fortes e a temperatura cai para 55oC negativos. A base avançada vai fornecer dados sobre geomorfologia glacial, temperatura, vento e captar elementos químicos no ar, como gás carbono, compostos orgânicos voláteis e aerossóis atmosféricos. A maioria dos dados serão transmitidos por telemetria. Alguns serão recolhidos pelos pesquisadores, que voltarão ao local uma vez por ano.

 

Se a Antártida é uma porta para as profundezas do estudo das variações climáticas, ela pode nos dar a chave para entendermos o aquecimento global e nos prepararmos para o futuro. Antes, porém, é preciso que os cientistas façam as pazes. Ainda não há consenso fechado de que o aquecimento de planeta é oriundo da poluição. De um lado, existem doutores em física que acreditam que a elevação da temperatura está relacionada aos processos naturais dos ciclos da Terra, como as glaciações, as manchas solares, os raios cósmicos, os neutrinos, as correntes oceânicas, etc. De outro, doutores em meteorologia e ecologia que justificam o aumento do calor na Terra a partir da emissão de gases na atmosfera pela ação humana.

A briga é boa e os cientistas não largam o osso que oferece mais do que cinco minutos de fama. Frequentemente eles se esquecem de descrever seu trabalho com a transparência demandada pelo público, falando apenas para seus pares. Dessa maneira, sem clareza definitiva, a controvérsia sobre a causa do aquecimento acaba restringindo os recursos para as investigações. Descer do pedestal é primordial para os “donos da verdade” se juntarem “ao chamado para pormos fim à guerra contra a natureza em nome de uma solidariedade sem igual com as gerações futuras”, como afirma o diplomata japonês Koichiro Matsuura, ex-diretor-geral da Unesco.