01/01/2012 - 0:00
O acenários são idílicos, dignos de um conto pastoril. Na paisagem verdíssima, destacamse montanhas com cumes nevados, pastagens vibrantes, pequenas vilas pictóricas, vaquinhas, igrejas, mosteiros e castelos – só falta uma Noviça Rebelde. Em toda parte, reina a mais absoluta tranquilidade. No fim do inverno, em março, as pastagens e as flores silvestres brotam e famílias se mudam temporariamente das casas nas vilas para os alpages (fazendas) de montanha, levando seus rebanhos. Assim começam nas montanhas de Fribourg, nos Alpes suíços, os primeiros meses de produção de um dos mais célebres queijos do mundo, o gruyère.
O gruyère e o emmenthal são primos- irmãos rivais
Nove meses depois, já no início do outono, as folhas dos vinhedos em poucas semanas passam do verde ao amarelo e ao vermelho, e caem logo em seguida. Os dias tornam-se cada vez mais curtos e frios. As pastagens fartas do verão começam a ficar ralas e o gado já não se satisfaz com elas. Chega, então, a hora do désalpe, o ritual que marca, há três séculos, o fim da temporada da fabricação do queijo mais emblemático do país.
A região de La Gruyère sustenta três diferentes designações e uma certa confusão com nomes. Gruyères (sem pronunciar o S no final da palavra) é o nome do castelo do século 11, o mais famoso da Suíça, encravado em uma bela cidadela medieval. La Gruyère compreende a região ao redor do castelo, no oeste do país, que abrange diversas vilas. E le gruyère é o próprio queijo famoso – eterno rival do primo emmenthal na preferência dos suíços. A pequena e bucólica vila de Charmey, situada a poucos quilômetros do castelo, com o tempo tornou-se o principal destino do désalpe.
Igrejas com campanários e pastagens vibrantes pontuam o cenário pastoril de Fribourg.
Receita suíça
O gruyère é um queijo duro, de massa cozida e textura cremosa, cujas verdadeiras origens se perdem no tempo. Para produzi-lo, o leite é aquecido a 56ºC em grandes cubas de cobre. Em seguida, é adicionado um coalho, mexido suave e constantemente para aumentar sua cremosidade. Quando chega ao ponto, introduz-se no tacho uma ferramenta chamada harpa, dotada de finos fios de aço que cortam a massa do queijo em pequenos fragmentos e separam-na do soro. A mistura é novamente aquecida para a massa adquirir um pouco de firmeza.
Depois, com um pano, retira-se o queijo de dentro do tacho e o soro escorre. A massa envolta no pano é posta em formas circulares e, sobre essas, grandes pesos para prensá-la e extrair o soro residual. Horas depois, as peças, já firmes, são mergulhadas em água salgada por 24 horas para reforçar a durabilidade. Só então os queijos vão para a câmara de maturação, onde permanecerão sob uma temperatura de 12°C a 14°C entre 6 e 12 meses.
Todos se enfeitam para participar do désalpe: vacas, crianças, cabritos e ovelhas. Os turistas adoram.
Ou seja, o trabalho é longo e árduo. Para avaliar a qualidade dos queijos durante a maturação, os queijeiros usam uma sabedoria antiga. A visão avalia a cor amarela e a aparência das peças. A audição detecta os ocos internos – expressamente proibidos no gruyère verdadeiro – com batidas de um martelinho nos queijos. Com uma pequena faca de lâmina circular retiram- se amostras das peças e amassase um pouco do queijo entre os dedos para checar a consistência. Por fim, são testados o aroma e o sabor.
Para manter a autenticidade desse produto de exportação, os suíços conquistaram em 2001 o certificado AOC – Appelation d’Origine Controlée (Apelação de Origem Controlada) –, que estabelece que somente os queijos produzidos nas regiões de Fribourg, Vaud, Neuchâtel, Jura e Berne têm autorização para usar o nome gruyère. A distinção tem grande importância política, já que a França também tem o seu gruyère produzido sob métodos semelhantes – nos quais as olhaduras (também conhecidas como buracos) são permitidas, o que até hoje gera polêmica e desdém entre os suíços.
Desfile pastoril
Embora tenha sido oficializado como evento há 25 anos, o désalpe ocorre há mais de 250 anos. O dia que o antecede é de muito trabalho nos alpages das montanhas. As vacas são lavadas, os adornos florais são preparados e sinos são polidos. Na noite anterior, os produtores celebram comendo fondue, tomando vinho e pequenas doses de fortíssimos destilados locais. Cantam e tocam músicas folclóricas num pequeno acordeão.
A descida começa cedo. Às 3h da manhã as vacas são ordenhadas. As flores são presas aos chifres e os sinos, dependurados no pescoço. Todos vestem trajes típicos. Muitos cantam músicas em suíço-alemão. Nas estradas, os rebanhos vão se encontrando e seguindo em comportadas fileiras até Charmey, onde os moradores – e milhares de turistas – se acotovelam para assistir à ensurdecedora entrada na cidade de rebanhos de vacas, bodes, cabras e ovelhas, tão comportados que parecem ter sido treinados para isso. Bem, eles são suíços.
Terroir lácteo
Na Suíça, só os gruyères produzidos nos pré-Alpes de Fribourg, Vaud, Neuchâtel, Jura e Berne possuem o cobiçado certificado de Apelação de Origem Controlada.
Concerto de alphorn.
Concerto de músicas folclóricas e concerto de barbas.
Suíça e França competem pelo melhor gruyère
A cacofonia de centenas de sinos de todos os tamanhos soando é desconcertante. Bandas de música e tocadores de alphorn, o instrumento de sopro dos suíços, parecido com um cachimbo gigante, se reúnem para tocar no centro. Pelas ruas, as pessoas deliciam- se com fondues, racletes e pickles vendidos em barracas. Os produtores de gruyère promovem degustações e competem pelo melhor produto.
Assim como o désalpe marca a descida dos rebanhos da montanha e o encerramento da produção do gruyère, há também o oposto: o início da temporada, quando as vacas são conduzidas montanha acima para os alpages. É o poya (poiá), que acontece espaçadamente ao longo de uma ou duas semanas. Curiosamente, o artesanato local retrata, em pinturas e entalhes típicos, muito mais cenas do poya que do désalpe. Esse, no entanto, é quase uma data nacional, enquanto aquele nem se celebra. Algum antropólogo deveria explicar por quê.
Serviço
Como chegar
Há voos diários do Brasil para Zurique e Genebra, de onde se pode prosseguir de carro ou em trens para Gruyère. A Suíça é um país de pequenas dimensões, boas estradas e extensa malha ferroviária.
Onde ficar
Procure um bed & breakfast em uma fazenda produtora de gruyère. Os cafés da manhã são maravilhosos, com queijos, geleias, manteiga e pães locais. Uma opção é a bucólica fazenda de Sylvie Jaquier Ruffieux, em Cerniat, vilarejo perto de Charmey com uma paisagem inesquecível. Telefone: (41) 0 26 9272244.
Informações turísticas
La Gruyère – www.la-gruyere.ch