01/06/2012 - 21:07
Quando começa o aprendizado? As nossas primeiras lembranças normalmente vêm do jardim de infância ou dos pais. Mas as lições sobre a vida se iniciam antes do nascimento. O que a mãe come, respira e sente pode ser transmitido para o feto. Estudos sobre a origem fetal, uma área da ciência que pesquisa a percepção e o aprendizado de informações pelo bebê dentro do útero, mostram que toda a experiência adquirida nessa primeira sala de aula influencia muito o bem-estar futuro.
Há 20 anos, o cientista britânico David Barker, professor da Universidade de Southampton (Reino Unido) e da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon (EUA), demonstrou pela primeira vez que pessoas que nascem com baixo peso têm maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares. A teoria de que a origem de algumas doenças pode estar relacionada à vivência do feto no útero tornou-se conhecida como “hipótese de Barker” ou “origem fetal das doenças dos adultos”.
Nos seus estudos, o epidemiologista inglês notou que, coincidentemente, nas regiões da Inglaterra e do País de Gales em que havia maior índice de mortalidade infantil também havia maior incidência de doenças cardiovasculares, o que indica que o ambiente escasso em nutrientes tem relação com esses males. Outra questão levantada é que as doenças crônicas têm aumentado, embora a oferta de alimentos seja maior. A explicação para o fato é que a grande maioria dos alimentos disponíveis é rica em gordura, mas pobre em nutrientes importantes para o desenvolvimento da criança, de modo que ela fica vulnerável aos males da modernidade, como obesidade e diabete.
O que sua mãe comeu?
A comida que os bebês recebem no útero determina a rapidez da sua formação e a qualidade da sua estrutura física. Durante o período de desenvolvimento, a subnutrição pode alterar um tecido ou um sistema permanentemente. Para muitos órgãos, a alimentação da mãe ao longo da gestação é crucial para a boa formação do feto. Em um cenário de escassez, o bebê prioriza a formação de seu órgão mais importante, o cérebro. Isso significa sacrificar outras partes do corpo, como pulmão e rim. Os órgãos que tiveram baixo peso ao nascer podem apresentar capacidade reduzida, além de perfil hormonal e metabolismo diferentes.
“O ser humano é produto de uma receita que se adquire na concepção e na entrega de nutrientes da mãe para o bebê. Esse fornecimento reflete a nutrição que a mãe teve durante sua vida”, afirmou David Barker à PLANETA. O crescimento do bebê não depende só do que a mãe come durante a gestação. Ele também é alimentado pela proteína, pela gordura e pelo cálcio liberados do corpo materno. Esse processo enriquece o sangue da mãe e serve como meio de prevenção, caso ela fique doente ou enfrente escassez de comida.
Entre outubro de 1944 e maio de 1945, as tropas alemãs bloquearam o oeste da Holanda, impedindo que carregamentos de comida entrassem. Durante esse período, os holandeses viveram um inverno rigoroso que foi seguido por uma escassez de alimento. O episódio ficou conhecido como “o inverno da fome”. Até o final do cerco, as pessoas consumiam apenas 500 calorias diárias. A consequência dessa má nutrição se refletiu nos bebês, os filhos desse inverno. Registrou-se grande incidência de natimortos e de bebês que nasceram com problemas congênitos e com baixo peso, tendo havido alta mortalidade infantil.
Hoje, as crianças que sobreviveram àquele inverno fatídico apresentam maior índice de obesidade, diabete e doenças cardíacas que os indivíduos concebidos em outras épocas mais felizes. No cenário atual, em que há excesso de gordura e comidas calóricas por todo lado, o corpo das pessoas está menos preparado que o normal para receber os alimentos, deixando-as mais propensas a desenvolver doenças crônicas.
Afinidade gustativaDentre os ensinamentos no útero, há uma informação valiosíssima: o que comer depois de nascer. Saber quais são os alimentos seguros para consumo é crucial na natureza. Os sabores da dieta das mães durante a gestação são transmitidos ao bebê por meio do líquido amniótico. O leite materno, tal como o líquido, também passa alguns dos sabores. É o que provou Julie Mennella, especialista em psicologia biológica do Centro Monell, nos Estados Unidos. A cientista estuda a origem das preferências e percepções dos gostos e meios de estimular o consumo de alimentos saudáveis em jovens.
Em sua pesquisa, 46 gestantes, durante o último trimestre de gravidez até os primeiros dois meses de amamentação, foram separadas em três grupos. O primeiro consumiu suco de cenoura durante a gravidez e água durante a amamentação; o segundo, água durante a gravidez e suco de cenoura na amamentação; e o terceiro tomou apenas água nos dois períodos. “Os bebês expostos ao sabor do suco de cenoura exibiram menos expressões faciais negativas quando alimentados por cereal sabor cenoura”, relatou Julie no artigo Prenatal and postnatal flavor learning by human infants. Além do mais, as mães que beberam suco de cenoura durante a gravidez perceberam que seus bebês preferiam o cereal com esse sabor em vez do sabor comum.
Escudo químico
David Williams, professor de toxicologia molecular e ambiental da Universidade do Estado de Oregon e pesquisador do Instituto Linus Pauling, nos Estados Unidos, estuda substâncias presentes nos alimentos que podem proteger quimicamente o bebê contra doenças futuras, como o câncer. Sua equipe constatou, através de estudo com ratos de laboratório, que algumas substâncias químicas que previnem câncer e outras doenças são transmitidas pela placenta, ficando disponíveis ao feto. Os filhotes expostos a essas substâncias apresentaram menos tendência a contrair câncer em relação ao grupo de controle.
“O estágio fetal de desenvolvimento é o momento em que a expressão de muitos genes é estabelecida por meio da epigenética (o efeito dos fatores ambientais sobre a função dos genes, sem alterar a sequência do DNA). A dieta rica em alimentos quimioprotetores é importante ao longo da vida, especialmente nos primeiros estágios”, afirmou Williams à PLANETA.
Ainda não se sabe ao certo quais são os alimentos correspondentes para a prevenção de cada doença. Mas alguns compostos, como o indol-3-carbinol, presente em vegetais crucíferos (como brócolis, couve-de-bruxelas e repolho), ajudam na prevenção do câncer. Também há evidência de que dietas ricas em ômega 3 protegem contra o desenvolvimento de doenças neurobiológicas. “Enriquecemos muitos pratos com ácido fólico (vitamina B9) para prevenir más-formações, como a espinha bífida”, relata Williams. O especialista acredita que futuramente uma mulher poderá receber a prescrição de uma dieta suplementar que protegerá seu futuro filho de doenças.
Saúde públicaA origem fetal guarda a possibilidade de prevenir algumas doenças por meio da melhora da qualidade de vida das mulheres. Atualmente, a má nutrição não se restringe a locais onde há baixa oferta de alimentos. Em países de Primeiro Mundo, a situação é preocupante, pois as mulheres mantêm uma dieta desbalanceada. “Há muita falta de conhecimento sobre a importância de proteger a nutrição das mulheres para beneficiar a próxima geração”, critica David Barker. Ele ressalta que mesmo os sistemas de saúde de países ricos, como os dos EUA, sofrem o impacto financeiro por causa do aumento de doenças crônicas. Por exemplo, 350 milhões de pessoas no mundo sofrem de diabete tipo 2, que poderia ser prevenida desde os primeiros momentos de vida.
“Muitas mulheres sabem o que não devem fazer: não beber, não fumar, não usar drogas. Mas poucas delas sabem o que devem fazer, como ter uma dieta rica em vitaminas e minerais, ir ao médico regularmente e fazer exercícios moderados”, explica Williams. Tudo ao que a mulher é exposta pode ter impacto no desenvolvimento da criança. O ar poluído das cidades grandes não é exceção. De acordo com um estudo liderado por Frederica Perera, da Universidade de Columbia, em Nova York (EUA), a exposição ao trânsito urbano leva a baixo peso no nascimento, aumento da incidência de asma e redução de função cognitiva.
Diante da evolução do cenário demográfico, os pesquisadores apostam na prevenção de doenças desde o útero. A Fundação Barker atua em duas frentes. Na primeira, dá consultoria e promove mais pesquisas sobre a origem fetal das doenças e sobre a saúde das mulheres. Na segunda, realiza cursos e palestras sobre a importância da nutrição antes, durante e depois da gravidez, com foco em saúde pública. Para Williams, o que ele chama de “quimioprevenção” pode trazer grandes benefícios futuros: um bebê nascido de uma mãe que tivesse consumido agentes quimiopreventivos poderia ser mais resistente às adversidades do ambiente atual. “A saúde de um bebê pode ser determinada por algo mais que a tendência genética. O ambiente fetal exerce grande papel”, conclui.