05/12/2016 - 20:38
Nas primeiras décadas do século 20, a Argentina aparentava caminhar a passos largos para se tornar um país desenvolvido. No final dos anos 1990 e na primeira década deste século, parecia ter chegado a vez do Brasil. Mas, tal como é característico em outras partes da América Latina, os dois países sucumbiram a crises econômicas, a casos de corrupção e adiaram para um futuro ainda imprevisível o momento de elevar seu status internacional. Esse ciclo, porém, não precisa ser eternamente repetido, como sugere a espanhola Susanne Gratius, professora de Relações Internacionais do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Autônoma de Madri. Momentos de crise, lembra ela, reservam lições importantes, e aprendê-las é crucial para progredir. Preparando-se para vir ao Rio de Janeiro em outubro, como participante da XIII Conferência de Segurança Internacional do Forte de Copacabana, Susanne concedeu a seguinte entrevista a PLANETA.
PLANETA – Desde 2013, o Brasil tem vivido uma polarização política que atingiu seu ápice com o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Talvez nunca se tenha visto no país tanta intolerância de parte a parte como nestes tempos. Como curar essa ferida?
SUSANNE – Creio que o processo de impeachment e as acusações de ambos os campos políticos têm feito muito dano ao país e às suas instituições democráticas. Mas as crises também servem para trazer à luz os problemas e oferecer a oportunidade para fazer reformas – no caso do Brasil, a reforma política pendente para garantir governos mais estáveis, reduzir os níveis de corrupção e alterar os partidos. A polarização não é apenas política, mas sobretudo social, pois as linhas geográficas de desigualdade quase coincidem com as preferências políticas do Nordeste e do Sul do país. Até agora, não se percebe nenhuma figura política que poderia conciliar as duas posições e, em geral, prevalece um descrédito da política e o desencanto.
PLANETA – O Brasil vive, com a operação Lava Jato, uma ocasião inédita de revelação das entranhas do funcionamento de um gigantesco caso de corrupção envolvendo políticos e empresários. Fala-se de que o caso lembra a operação Mãos Limpas, da Itália, que desembocou na eleição de Silvio Berlusconi, um empresário-político com práticas condenáveis sob vários aspectos. Como o Brasil pode escapar desse equívoco e extrair lições positivas da experiência?
SUSANNE – Nenhum Berlusconi surgiu no Brasil e, apesar do problema do crime organizado, tampouco há estruturas mafiosas comparáveis às da Itália. A principal lição é a necessidade de reformar as instituições e despolitizar a justiça para assegurar a igualdade de tratamento de todos os corruptos e não singularizar determinados casos, como o de Lula. Outra lição seria talvez não criar tantas expectativas (Brasil potência global e estrela emergente) que não possam ser satisfeitas logo.
PLANETA – Durante os últimos anos, o Brasil passou ao mundo a imagem de um país em crise profunda. Esperava-se que a realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro fosse marcada por eventos negativos para o país, mas isso não aconteceu. Como a srª avalia a experiência da Olimpíada carioca em relação à imagem do Brasil no exterior?
SUSANNE – A imprensa internacional maximizou a imagem do Brasil como estrela cadente (lembre-se da capa da revista inglesa The Economist na qual o Cristo Redentor, depois de “disparado” para o alto, fazia uma trajetória de queda) e exagerou os problemas de infraestrutura durante os Jogos Olímpicos. Não se pode esquecer que o balanço é misto: por um lado está o ciclo econômico negativo, mas, por outro, nos dois últimos governos do PT o Brasil avançou muito em termos de desenvolvimento (integração e promoção de uma nova classe média, redução da pobreza e da desigualdade) e integração entre Nordeste e Sul, em infraestrutura, etc.
PLANETA – O conceito de democracia é interpretado de diferentes maneiras na América Latina. Os governos Chávez/Maduro, na Venezuela, partiram de eleições livres para um regime cada vez mais autoritário. No Equador, Rafael Correa manobrou para ser reeleito sucessivas vezes, um objetivo também tentado por Evo Morales na Bolívia. No Brasil, a deposição do governo de Dilma Rousseff, feita segundo normas constitucionais, foi entendida por seus partidários como um golpe. Afinal, o que se entende por democracia nesta parte do mundo?
SUSANNE – Esta é uma pergunta difícil de responder. No caso do Brasil, sempre houve uma “democracia de consenso e negociação” entre elites de diferentes partidos e ideologias. O sistema político impede que um partido governe com maioria absoluta. A fragmentação no Congresso é uma oportunidade para construir coalizões, mas, como temos visto agora, também fomenta a instabilidade. O impeachment quebrou a possibilidade de consenso e, embora não seja inconstitucional, veio de uma legitimidade duvidosa e duplo padrão (julgar Dilma Rousseff por algo que governos anteriores também fizeram). Em geral, na América Latina cabem muitas fórmulas sob o grande guarda-chuva da democracia, que pode ser mais representativa e mais participativa ou direta, como nos casos da Bolívia e do Equador. A Venezuela já representa um caso diferente, com uma situação econômica e política de solução muito difícil.
PLANETA – A América Latina ainda não aprendeu a eleger governos que associem a preocupação social à boa gestão das contas?
SUSANNE – Depende do país e do contexto internacional. No Chile, tal como no Uruguai, há ou tem havido governos comprometidos com o progresso social e uma gestão razoável, e existe um grande número de países corruptos e/ou governos menos comprometidos com o desenvolvimento social. A volta de políticas de ajuste econômico na Argentina e no Brasil seria muito negativa para a continuação da transformação social que alguns governos de esquerda não populista começaram.
PLANETA – Qual será o desfecho da atual crise venezuelana?
SUSANNE – Diferentes cenários podem ser desenhados. Em todos eles continua a polarização política entre chavistas e oposição, muito mais profunda do que no caso do Brasil. Um cenário seria uma vitória eleitoral da oposição se o governo permitir uma nova votação (o que não parece provável). Seria uma volta às políticas anteriores: fim da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba), retorno ao Ocidente, recuperação do Estado, mas também políticas de ajuste com altos custos sociais e uma oposição que leva seu desconforto para a rua. Outro cenário é a continuação do atual regime e, eventualmente, um colapso econômico e uma convulsão social. Um terceiro seria um governo militar provavelmente temporário.
PLANETA – Há certo tempo, falava-se dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) como países fadados a entrar na classe dos desenvolvidos. Quais, entre eles, chegarão mais cedo a essa condição?
SUSANNE – A China é o país mais poderoso, a segunda maior economia, uma potência militar que começa a competir com os Estados Unidos e é seu principal credor. Ela mantém um alto crescimento econômico, que está em cerca de 6,7%. Mas as enormes desigualdades no país, os problemas ambientais, a falta de democracia, a infraestrutura insatisfatória, os baixos salários, o envelhecimento da população, etc. freiam seu desenvolvimento, e ainda não podemos (ou talvez nunca possamos) dizer que a China é um país desenvolvido. Além disso, ela não tem os recursos naturais do Brasil e tem de importar energia. A Rússia é um caso especial, por ser uma potência em declínio em termos econômicos. A Índia continua a ter gravíssimas desigualdades e problemas de desenvolvimento, tal como a África do Sul (país mais desigual da África subsaariana) e o Brasil.
PLANETA – Como a srª analisa o processo de paz na Colômbia e o prêmio Nobel atribuído ao presidente Juan Manuel Santos?
SUSANNE – O prêmio Nobel da Paz é um endosso internacional a Santos para que alcance a paz, apesar de o “não” ter vencido o referendo, que só envolveu os votos de 40% da população. O futuro do acordo agora é incerto – a votação significou a rejeição da anistia às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que será difícil de renegociar. Também não será fácil um consenso entre Santos e (o ex-presidente Álvaro) Uribe, que agora são inimigos políticos – a missão principal e o mapa mental de Uribe parecem ser basicamente destruir o outro. Não está claro o que querem aqueles que votaram “não”, e se não se conseguir um acordo existe a possibilidade de volta à guerra. É uma oportunidade histórica de acabar com 52 anos de guerra, e não se deve desperdiçá-la.