09/10/2013 - 11:48
Diariamente nos deparamos com noticiários de casos de fraudes, golpes, corrupção e toda sorte de escândalos. A não ser que sejamos um dos acusados, a tendência é nos revoltarmos com essas situações. Abalada por sucessivos escândalos, a sociedade está se tornando cada vez mais intolerante e menos indulgente com a desonestidade – o que é bom, mas também é ruim. Ninguém mais acredita em “pecadores arrependidos”.
A análise superficial costuma enquadrar as pessoas envolvidas em atos de desonestidade como as “maçãs podres” do barril. Entretanto, na prática, vivemos batalhando contra a tentação do comportamento incorreto, mas vantajoso, de modo similar ao de banqueiros e políticos pegos em escândalo. Pequenos atos de desonestidade são comuns, sobretudo quando o risco de ser descoberto é pequeno, como em infrações de trânsito ou na obtenção de vantagens no Imposto de Renda.
O que já é senso comum ganhou respaldo com pesquisas recentes de psicólogos e sociólogos comportamentais, que revelam que todos estamos a um passo de cometer deslizes morais o tempo todo. Ao contrário do que imaginamos, atos desonestos não são, necessariamente, cometidos por pessoas sem escrúpulos, mas por pessoas menos escrupulosas. O comportamento escandaloso está apenas a alguns degraus de condescendência do comportamento normal. O problema maior é que os pequenos delitos levam aos grandes escândalos. Muitos crimes derivam da autoindulgência continuada.
O psicólogo Dan Ariely, da Universidade de Duke, nos EUA, aplicou testes de honestidade em 30 mil pessoas. Com dinâmicas diferentes, os testes permitiam aos participantes embolsar pequenas quantias de dinheiro ilegalmente. No fim do experimento, Ariely identificou 12 grandes trapaceiros que desviaram quantias maiores – US$ 150 no total, somados. Mas o que chamou a atenção foi o número de pequenos trapaceiros que roubaram pequenas quantidades: 18 mil pessoas embolsaram um total de U$ 36 mil – um prejuízo bem maior do que o causado por algumas poucas “maçãs podres”.
“Todo mundo mente”, diz o cínico dr. House, o médico do seriado americano House interpretado pelo ator Hugh Laurie, em uma de suas máximas mais célebres, coberto de razão e, ironicamente, de sinceridade. Criamos o tempo todo, para nós e para os outros, pequenos embustes e desculpas para aliviar a consciência. Para Ariely, essa é uma consequência natural da nossa capacidade de racionalizar as coisas e os delitos. Quanto mais racionalizamos, mais relativizamos a moral – e os mais criativos costumam ser mais bem-sucedidos no processo.
Nem toda mentirinha branca descamba em megaesquemas de corrupção, mas as maiores infrações, normalmente, nascem do acúmulo de pequenos golpes. “A maioria das pessoas, quando tem a chance de trapacear, acaba sendo um pouquinho antiética. Muitos não percebem que estão se corrompendo quando acontece aos poucos. É como ir aumentando os pesos na musculação: aumentando devagar é difícil notar”, diz Francesca Gino, professora da Universidade Harvard, nos EUA, parceira de Ariely.
Bússola moral
Em um de seus estudos, Gino evoca a imagem de uma bússola para analisar o funcionamento do senso moral. Por mais que a agulha interna esteja constantemente apontando para a direção certa, são muitas as forças capazes de confundir o “aparelho”. A mais óbvia das tentações, evidentemente, é o dinheiro. Em uma experiência feita na Warwick Business School, na Inglaterra, o professor Nick Chater observou que, quando o dinheiro estava envolvido, a maioria dos alunos ficava tentada a trapacear.
No teste, uma série de imagens era apresentada aos participantes por dois segundos. Cada uma tinha, diante de si, dois recipientes quadrados lado a lado e, em cada um, havia bolinhas que variavam de quantidade de acordo com a figura proposta. Os alunos deveriam prestar atenção na quantidade de bolinhas de cada figura depositada no quadrado e apontar em qual haveria mais pontos. Mas havia um detalhe: ganhariam uma libra se indicassem o quadrado direito e dez centavos se apontassem o quadrado esquerdo, independentemente da resposta certa. Resultado: a maioria trapaceou escolhendo indiscriminadamente o da direita. Alguns o fizeram sempre, em todas as ocasiões – para ganhar uma libra.
Em outro experimento, dramatizado este ano no programa de rádio Human Zoo, da BBC, Chater propôs um jogo de perguntas e respostas permitindo a um dos grupos ter acesso ao gabarito antes de entregar as respostas – sem a supervisão da direção. Indiscutivelmente, esse foi o grupo que sempre apresentou melhores resultados. No final da experiência, a maioria dos participantes reconheceu que, quando podia, havia consultado o gabarito para melhorar o desempenho. “Caráter é um atributo importante, mas é mais uma batalha constante do que um estado mental fixo. É surpreendente o quanto nosso comportamento é flexível”, conclui Chater.
O que leva as pessoas a ceder à tentação? São muitas as variáveis, mas há boas pistas. Se por um lado estamos frequentemente sujeitos a ser desonestos, por outro apreciamos nos representar de maneira ética, com caráter nobre e reto. Isso pode levar tanto a relativizar deslizes morais quanto a realizar gestos desprendidos.
Na série de pesquisas que antecederam o livro A Mais Pura Verdade Sobre a Desonestidade, de Dan Ariely (Editora Campus Elsevier, 2012), o pesquisador e seus colegas observaram alguns padrões. Ao contrário do que se poderia supor, o cálculo do custo-benefício de um ato desonesto não se mostrou determinante. Ou seja, pesar o quanto vale a pena trapacear sob risco de ser pego não influencia tanto. Outro dado (surpreendente) é que a quantidade de dinheiro envolvida também não entra no cálculo. As pessoas sentem-se menos mal em tomar uma lata de Coca-Cola que não lhes pertence, por exemplo, do que em roubar, em dinheiro, o valor do refrigerante. Ou seja, quanto maior a distância física do papel-moeda, maior costuma ser a tentação de tomar algo indevidamente. O dinheiro é uma evidência de desonestidade.
A atitude de terceiros – a pressão social – tem papel fundamental nas escolhas morais. Em situações criadas pelos psicólogos, o índice de trapaças aumenta quando uma pessoa do grupo (no caso um ator infiltrado) assume para os participantes estar trapaceando. E diminui quando o ator trapaceiro age como alguém de fora do grupo. “É comum observar isso em situações de guerra, quando um soldado atribui uma violação moral em seu grupo às dificuldades da situação, mas ao mesmo tempo acusa o oponente, em situação semelhante, de ter agido por falta de caráter”, afirma Ayar Shayal, psicólogo da Universidade Duke.
Maçãs podres e barris limpos
Somos maçãs vivas sujeitas a minhocas na cabeça. Se os barris não estiverem higienizados, o risco de podridão aumenta. Limpem-se as caixas e mantenham-se saudáveis as instituições, diria o óbvio ululante. Uma das recomendações práticas para reforçar a bússola do caráter é reforçar as leis e as normas. Antes de um dos testes de honestidade, por exemplo, os pesquisadores declamaram os dez mandamentos bíblicos para os participantes e os fizeram jurar sobre a Bíblia. Resultado: ninguém trapaceou, nem mesmo os ateus declarados.
Mas, então, o que explicaria casos de corrupção na Igreja, por exemplo? “Lembretes morais como os dez mandamentos podem ser muito efetivos para reduzir comportamentos desonestos. No entanto, o efeito é momentâneo e diminui com o tempo, podendo até se inverter, quando esses lembretes acabam se tornando parte integral do ambiente”, explica Shayal.
O senso moral não nasce pronto. Desenvolve-se ao longo da vida. O processo civilizatório resulta da repressão de instintos primitivos incompatíveis com a vida em sociedade. Ao longo da evolução, as espécies buscam satisfazer seus desejos, desde os mais básicos aos mais complexos. Mas em algum momento esbarram na vontade do outro. A evolução inventou a moral para administrar os instintos e viabilizar a vida social. “Somos todos formados da mesma substância interna. O desejo de poder, de ganhar e de consumir constitui sentimentos humanos”, explica Gustavo Alarcão, psiquiatra e psicanalista do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Se por um lado a racionalização e a relativização flexibilizam os valores, o mesmo processo induz a um olhar mais honesto sobre nós mesmos. “Devemos evitar generalizações entre pessoas ‘mais normais’ e ‘mais boazinhas’. Devemos prestar atenção. Tentar eleger uma classe de pessoas mais corretas do que outras é a base do sistema totalitário”, afirma Alarcão. Quem nunca mentiu atire a primeira pedra.