24/02/2022 - 17:37
A escalada da crise entre Rússia e Ucrânia teve início na segunda-feira (21/02), com um discurso televisionado do presidente russo, Vladimir Putin, que durou cerca de uma hora. Na ocasião, ele anunciou o reconhecimento das autoproclamadas “repúblicas populares” de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia. Putin foi longe no discurso, relembrando partes da história da Ucrânia – pelo menos de seu próprio ponto de vista.
Alegação: “Ucrânia moderna foi criada pela Rússia”
“A Ucrânia moderna foi criada inteiramente pela Rússia, mais precisamente pelos bolcheviques, a Rússia comunista”, disse Putin. Esse processo teria começado imediatamente após a revolução de 1917, quando Lenin e seus camaradas separaram o que “historicamente faz parte do território russo”: “Ninguém perguntou aos milhões de pessoas que viviam lá o que pensavam disso”, completou o líder russo.
Verificação pela DW: Falso
Segundo Putin, Vladimir Lenin é o “criador e arquiteto” da Ucrânia. O presidente russo descreve as “concessões” de Lenin – ou seja, o fato de o território ucraniano dentro da União Soviética ter recebido o status de uma república própria – como “pior do que um erro”.
Putin se refere à política de nacionalidade nos primeiros anos da União Soviética sob Lenin. Devido às circunstâncias políticas e no interesse do equilíbrio de poder, foram concedidas aos povos não russos certas liberdades em relação à língua, cultura e administração.
Porém a Ucrânia moderna não foi “criada” pela Rússia, uma vez que um Estado nacional ucraniano independente, a República Popular da Ucrânia, existiu por cerca de dois anos antes de ser tomado pelo Exército Vermelho em 1920. Isso, graças aos esforços ucranianos pela independência em relação ao Império Russo, ao qual a maior parte da Ucrânia atual esteve incorporada até seu colapso, em 1917. Os territórios que haviam pertencido à monarquia austro-húngara até 1918 também se tornaram independentes e se uniram à República Popular da Ucrânia em 1919.
O especialista em Leste Europeu Guido Hausmann explica que, mesmo que não tenha durado tanto tempo, é importante ter claro “que esse Estado se formou no fim da Primeira Guerra Mundial e que não foi graças à Rússia”.
O historiador Joachim von Puttkamer também confirma o completo fracasso de Putin em reconhecer os esforços ucranianos pela independência – já durante o Império Russo, mas também mais tarde, na União Soviética.
“Diante do longo movimento nacional ucraniano, é um absurdo dizer que a Ucrânia é um produto dos bolcheviques, ou seja, da era soviética”, diz Puttkamer, que leciona História do Leste Europeu na Universidade de Jena, Alemanha. Lenin reagiu a um movimento pela independência ucraniana e à formação de um Estado próprio, e não o criou, reitera.
Alegação: “Ucrânia nunca teve tradições estáveis de um Estado de verdade”
Em seu discurso na segunda-feira, Putin disse que a Ucrânia nunca se tornou um “Estado estável”. “Portanto, em 1991 [após o colapso da União Soviética], ela optou por uma imitação imprudente de modelos estrangeiros que nada têm a ver com a história ou com as realidades ucranianas.”
Verificação pela DW: Impreciso
Não fica claro o que o presidente russo quis dizer com “Estado estável” – a declaração é, portanto, difícil de julgar. Contudo, conforme explicado acima, havia de fato um Estado ucraniano independente antes da União Soviética. Não durou muito, apenas dois anos, mas isso porque a Rússia soviética não permitiu e anexou seu território.
Voltando ainda mais atrás na história, entre o período do domínio polonês (séculos 14 a 18) e o do domínio russo (século 18 a 1917), houve outra fase de independência: em 1648, os cossacos libertaram quase toda a Ucrânia do domínio do Reino da Polônia-Lituânia e criaram uma associação governante, a chamada Hetmanate (Hetman: líder supremo do Exército cossaco), que durou mais de 100 anos.
E antes ainda do domínio polonês, durante a Idade Média, houve o antigo Estado da Rússia de Kiev, nas terras eslavas do leste. Esse império abrangeu os territórios mais importantes da atual Ucrânia, Rússia e Belarus: todos os três países, portanto, reivindicam a Rússia de Kiev como seu Estado predecessor.
Guido Hausmann, que chefia o Departamento de História do Instituto Leibniz de Estudos do Leste e Sudeste Europeu em Regensburg, explica: “O argumento russo é que isso marca o início da condição de Estado da Rússia. A Ucrânia, por outro lado, vê [a Rússia de Kiev] como o início de seu Estado.”
Essas “reivindicações concorrentes da herança medieval” também são avaliadas de formas muito diferentes em pesquisas, continua Hausmann. Certo é, contudo, que a “Ucrânia não fazia simplesmente parte da Rússia durante a Idade Média”.
Em suma, o território que hoje faz parte da Ucrânia já integrou outros Estados no decurso da história. Mas o mesmo ocorreu com outros países – por exemplo, a Alemanha. Portanto, como argumento para negar à atual Ucrânia um “Estado estável”, esse argumento é fraco.
Apesar do passado conturbado da Ucrânia e de suas raízes comuns com a Rússia e Belarus na Idade Média, não há como negar um movimento nacional ucraniano de longa data. E por último, não menos importante, a Ucrânia tem sido um Estado próprio há três décadas, desde o colapso da União Soviética. O apoio da população a essa saída, em 1991, foi esmagador: mais de 90% dos ucranianos votaram a favor num referendo.