08/03/2020 - 0:01
Gosto de imaginar como teria sido escrita a história da humanidade se mulher e homem fossem apenas potências complementares. A oposição estabelecida desde sempre nos roubou, ao longo dos milênios, a empatia mútua, nos convertendo em inimigos íntimos, algozes um do outro: mulheres temendo a opressão masculina, homens temendo a vingança feminina – uma espécie de mágoa genética acumulada por gerações, pronta para um dia explodir como a caixa de Pandora. A mim parece que essa construção masculina do mundo, tão desigual, resultou não apenas em gigantescas injustiças contra as mulheres: também não fez muito bem a eles.
O poeta romântico Alfred de Vigny, em seu diário pessoal, fez um desabafo mais ou menos assim: com tudo o que estudei sobre a condição feminina, em todas as culturas e em todos os tempos, convenci-me de que um homem, quando encontrasse uma mulher, em lugar de dizer “bom dia”, deveria dizer “me perdoe”. Não deve haver carma maior do que ser carrasco histórico. Enfim, o que está feito está feito. Mas quando chegamos ao Brasil de 2016, onde uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, vale revisitar os caminhos e as personagens dessa trajetória para abrir alguma possibilidade de recomeço.
Em seu livro Mulheres (L&PM), o escritor uruguaio Eduardo Galeano fez exatamente isso: recuperou diversas figuras femininas para nos lembrar o que foi feito delas ao longo do tempo e o que elas fizeram com o pouco espaço que a história lhes reservou. É bem desproporcional. Joana D’Arc, Rosa de Luxemburgo, Olga Benário, Camille Claudel, deusas gregas, figuras bíblicas, bruxas, artistas e anônimas renascem nas páginas de Galeano com contornos e camadas muitas vezes abafados ou distorcidos pela história oficial – uma narrativa masculina de nascença, onde os atores principais são homens, e mulheres que não se encaixam no roteiro são, em geral, queimadas vivas, decapitadas, traídas, difamadas ou apenas condenadas ao esquecimento.
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Impressiona ver como nem mesmo a soma dessas figuras extraordinariamente corajosas foi capaz de nos levar a um mundo mais justo. Como é possível estarmos elegendo apenas neste século as primeiras chefes de estado do planeta, quando Olympia de Gouges (uma das eleitas de Galeano) redigiu, em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, buscando completar o documento equivalente aprovado na Assembleia Nacional da França da revolução, restrito aos homens daquele país? Olympia foi guilhotinada dois anos depois, aos 45 anos. O artigo 1º da sua Declaração dizia: “A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum”.
No Canadá, em 1929, exatos 138 anos depois, a definição legal de “pessoa” foi enfim estendida ao sexo feminino, graças à iniciativa de cinco amigas determinadas. Em 1943, outra mulher foi guilhotinada na França, desta vez por defender o aborto. À época, as francesas ainda nem votavam. Por ajudar 27 mulheres a interromper gravidezes indesejadas, Marie-Louise Giraud foi decapitada em praça pública. Hoje, o aborto ainda é proibido por lei em 69 países, a maioria no hemisfério sul. Na América Latina, apenas Uruguai e Cuba permitem a prática em qualquer circunstância, reconhecendo a maternidade como um direito e uma escolha pessoal, devidamente regulamentada. Quando encaramos a lenta evolução dos fatos, a sensação é de que realmente a história não nos pertence.
Sem direito de decidir
As mulheres de Galeano são reais e míticas e servem de espelho atemporal. Ensinam que desde Eva nosso destino estava escrito: pagaríamos pelo pecado original, sofrendo as dores do parto, eternamente impuras, à margem dos acontecimentos, alheias às decisões que envolvem nosso próprio corpo e desejo. Cidadãs de segunda classe, nos restaria uma existência voltada para dentro. Ou o crime. Ou o sublime atrevimento. Feiticeiras, ou santas, nem mais, nem menos.
Essas mulheres reais, entretanto, seguem querendo apenas a liberdade como direito natural. Querem ser livres como a irreverente Josephine Baker, que, negra e pobre, saiu dos Estados Unidos ainda menina para incendiar os teatros e as ideias de espectadores europeus com uma dança impregnada de sensualidade e deboche, que desarticulava quase qualquer discurso conservador. Josephine confiava cegamente em si mesma, e esse poder fez dela artista respeitada mundialmente, reconhecida não só pela atitude fora dos padrões, mas também por sua atuação durante a Segunda Guerra Mundial e na luta pelos direitos dos negros norte-americanos.
Antes dela, a jovem Nellie Bly deu a volta ao mundo inspirada pelo escritor Júlio Verne, não em 80, mas em 72 dias, sozinha. Partiu em 1889. Quando voltou da aventura, tornou-se a primeira jornalista investigativa da história, tendo fingido demência para ser internada em um sanatório feminino e relatar as condições desumanas com que eram tratadas as internas “histéricas” de lá. Nellie era tão louca quanto qualquer uma de suas colegas submetidas às mais cruéis práticas “terapêuticas”.
Ninguém é inteiramente livre, homem ou mulher. Mas seria revolucionário passar a limpo as atribuições, os pesos e as medidas, nivelando todos nós de uma forma mais justa, solidária e, principalmente, equilibrada. É um ajuste tão lógico, e com tanto potencial transformador, que me intriga pensar o que estagnou a nossa evolução social tão fortemente. Vício? Medo? Ignorância? Revisitar os personagens de nossa história pode ajudar a identificar o obstáculo real, aquilo que nos impede de olhar para o nosso duplo com um pouco mais de confiança e empatia. E aí, quem sabe, talvez não seja preciso esperar que mulheres extraordinárias reafirmem nossos valores. Quem sabe, um dia desses, ser apenas mulher já seja suficiente.