22/06/2024 - 5:41
Anna Magdalena Wilcke (1701-1760), uma conceituada soprano da corte de Saxônia, hoje leste da Alemanha, casou-se em 1721 com Johann Sebastian Bach (1685-1750). Porém na história da música ela não consta como musicista, mas “apenas” como cônjuge de um dos compositores mais famosos de todos os tempos. Isso agora pode mudar.
Foi só a partir da década de 1970 que a musicologia da Europa passou a se ocupar de modo consequente das mulheres que compunham e executavam música. “Primeiro entraram em foco as mulheres associadas a homens, como Anna Magdalena Bach”, diz Kerstin Wiese, diretora do Museu Bach, que é parte do Arquivo e Instituto de Pesquisa Bach de Leipzig.
Em seu livro Die Frauen der Bach-Familie (As mulheres da Família Bach), a pesquisadora Maria Hübner reuniu um total de 33 biografias, que são também o tema de uma pequena mostra no Museu Bach. Para Wiese, é importante destacar cada uma dessas figuras como personalidades autônomas, “pois, no fim das contas, na vida musical, até hoje as mulheres ficam à sombra dos homens”.
Quem são essas mulheres?
Poucos já ouviram falar de Anna Carolina Philippina, Maria Salome, Cecilia ou Catharina Dorothea Bach. Mas eram elas que não só administravam suas famílias – deixando os maridos e pais livres para seguir a carreira de compositor, instrumentista, pedagogo, diretor musical – como também se encarregavam de copiar partituras à mão, do lado comercial das composições ou de continuar publicando postumamente as obras dos homens.
E, não menos importante, algumas eram compositoras e musicistas profissionais. Como a soprano italiana Cecilia Grassi, que cantava na Ópera de Veneza quando conheceu seu futuro marido, o caçula de Johann Sebastian, Johann Christian Bach. Após a morte deste, foi ela que cuidou para que uma ópera dele fosse executada como constava da partitura.
Algumas dessas artistas são contempladas em obras de referência do século 18: “No Musicalisches Lexicon de Johann Gottfried Walther, de 1732, há menção a toda uma série de compositoras, musicistas, assim como às obras que elas compuseram”, registra Wiese.
No século 19, contudo, elas desaparecem da literatura. O autor belga August Gathy chega a afirmar em 1835, em sua Enciclopédia de toda a musicologia, que as descendentes de Johann Sebastian Bach eram privadas de qualquer musicalidade, só os filhos são mencionados como talentosos. “Provavelmente Gathy nem sequer se ocupou das filhas, simplesmente afirmou isso, como preconceito”, supõe Wiese.
Se as fontes biográficas sobre o Johann Sebastian já são parcas, é de se esperar que não haja quase nada sobre as mulheres da família. Assim, cada novo achado relativo ao mestre barroco é festejado por seus muitos admiradores. Numa única carta, a um antigo colega de estudos, ele menciona explicitamente a esposa, Anna Magdalena – que “canta um soprano correto” – e a filha mais velha, Catharina Dorothea – que “não está indo tão mal” (para a época, uma apreciação absolutamente positiva).
Reanimando retratos apagados
Negócios à parte, assim como outras dinastias musicais, os Bach cultivavam o hábito de fazer música juntos, por puro prazer. Num quodlibet, uma espécie de pot-pourri para ser cantado a várias vozes, composto para um desses concertos caseiros, o mestre conta que o cavalariço espetou uma “Maria Salome” com um ancinho, deixando-a zangada. A quem ele se refere?
“A gente conhece os irmãos de Johann Sebastian Bach, mas quase ninguém sabe quem era Maria Salome”, observa Kerstin Wiese, “eu quero simplesmente que se saiba que também existia uma irmã.”
Anna Carolina Philippina Bach era filha do segundo filho de Johann Sebastian, Carl Philipp Emanuel, o qual, no século 18, na passagem do barroco para o classicismo musical, era ainda mais célebre do que o pai. Ela organizava a correspondência de C.P.E., fazia contatos com os editores, músicos e copistas. Após a morte do pai, ela seguiu publicando e vendendo suas obras.
No Museu Bach, um corte artístico de papel de 1776 traz a silhueta de Anna Carolina – um dos poucos retratos existentes das mulheres da dinastia. O recorte consta da vasta coleção pessoal de objetos musicais do presidente do Arquivo Bach de Leipzig, Ton Koopman.
Ele disponibilizou 25 retratos femininos para a atual exposição: “Eu comprava e pesquisava tudo o que tem a ver com música. Eu mesmo fiquei surpreso com quantos retratos interessantes de mulheres havia, também de musicistas”, comenta o organista e regente holandês de 79 anos.
Hora de a história da música acordar
O grau de importância que algumas dessas compositoras, instrumentistas ou cantoras alcançaram nas respectivas épocas torna ainda mais incompreensível sua prolongada ausência dos livros de história da música. Anna Magdalena Bach é um exemplo bem ilustrativo.
Ela era cantora da corte do príncipe Leopoldo de Anhalt-Köthen, onde seu pai, Johann Kaspar Wilcke, era trompetista, e para a qual Johann Sebastian foi contratado como mestre de capela em 1717. Ambos se casaram no ano seguinte ao da morte da primeira esposa do compositor, a prima de segundo grau Maria Barbara.
Embora não haja registros diretos sobre a competência nem o prestígio profissional de Anna Magdalena, certas entradas nos livros de salários da corte na Saxônia permitem tirar conclusões: ela ganhava o dobro do pai, e tinha o terceiro maior salário (o primeiro cabia a Bach).
Em 1723, Bach assumiu o posto de kantor da Igreja de São Tomás, tornando-se responsável não só pelo coro, como também por toda a música municipal de Leipzig. A partir daí, Anna Magdalena não podia mais se apresentar publicamente na cidade, passando a se dedicar inteiramente tanto aos cuidados da família e da casa como à música do genial marido.
A seu trabalho de copista se deve, por exemplo, uma das mais importantes cópias das Seis suítes para violoncelo solo, BWV 1007-1012 que chegaram à posteridade (o manuscrito do próprio Bach se perdeu). Ela também se engajou para que a monumental e inacabada Arte da Fuga fosse publicada após a morte do compositor.
Por último, mas não menos importante, ficou imortalizada na coletânea Pequeno livro de Anna Magdalena Bach, compilada pelo marido em seu nome, que há mais de dois séculos é percurso obrigatório para todo estudante de piano.
Antes ignoradas, escorraçadas, obliteradas, as compositoras em especial são um vasto capítulo da arte que cabe explorar. Para quem tenha curiosidade, aqui apenas alguns nomes, do século 12 ao 21, da Europa e mais além, que não necessitam álibi nem permissão de ninguém para ocupar seu lugar nas histórias da música erudita:
Hildegard von Bingen, Barbara Strozzi, Marianna Martines, Fanny Hensel (n. Mendelssohn), Clara Schumann, Dora Pejačević, Ethel Smyth, Cécile Chaminade, Alma Mahler, Grażyna Bacewicz, Rebeca Clarke, as irmãs Lili e Nadia Boulanger, Kaija Saariaho, Sofia Gubaidulina, Olga Neuwirth, Unsuk Chin – e elas são cada vez mais.
A exposição Die Stimmen der Frauen (As vozes das mulheres) está aberta ao público no Museu Bach de Leipzig até 10 de novembro de 2024.