01/05/2010 - 0:00
Entre seis e oito horas por dia, a maioria de nós deita-se na cama e se desliga do mundo – é o momento de visitar o reino do deus grego Hipnos, responsável por distribuir a todos um sono agradável e reparador. Mas esse desligamento está muito longe de significar inatividade. Além de abranger o período em que sonhamos – uma experiência que, em si, representa todo um universo à parte –, o sono é uma ocasião de intenso movimento no corpo, como a ciência tem demonstrado. Conheça aqui algumas descobertas recentes sobre esse tema.
Plasticidade
Diversos pesquisadores consideram que o sono serve, em primeiro lugar, para preservar a plasticidade do cérebro, ou seja, sua capacidade de mudar como reação imediata a uma experiência. Enquanto dormimos, os neurônios do cérebro comunicam-se uns com os outros, fortalecem conexões específicas, enfraquecem outras e apagam o que encaram como inútil. “À noite, o cérebro adormecido está livre do mundo e é um redemoinho de atividade”, observa o neurobiólogo Terrence Sejnwoski, chefe do Laboratório de Neurobiologia Computacional no Salk Institute em La Jolla, na Califórnia. “Os neurônios estão formando padrões coerentes que, sem o sono, não seriam nem de perto tão extensos, robustos, estáveis e flexíveis.”
Essa rearrumação cotidianamente promovida pelos neurônios tem um motivo básico, afirma Rodolfo Llinas, diretor do Departamento de Fisiologia e Neurociência da Escola de Medicina da Universidade de Nova York. Para ele, o cérebro humano está constantemente aprendendo, e quanto mais aprende, mais recursos ganha para fazer prognósticos – uma capacidade necessária para os organismos que se movem. Llinas justifica sua opinião lembrando que as plantas, que ficam paradas, não têm cérebro. Ele também menciona certos animais marinhos, denominados urocordados, que se movem sem impedimentos até que, já adultos, se fixam em uma rocha – e, então, comem e digerem o próprio cérebro. Sem locomoção, lembra o neurocientista, os urocordados não precisam prever mais nada e seu cérebro se torna inútil.
O sono dividido dos antigos
Dormir sete ou oito horas por noite de uma só vez não é uma característica que acompanha o homem desde suas origens. Registros encontrados em diários, documentos da nobreza de países europeus e inclusive a literatura do primeiro século depois de Cristo contêm informações sobre um sono fracionado em duas partes de aproximadamente quatro horas cada uma. O intervalo de vigília, que durava algumas horas, era aproveitado para o sexo, as tarefas domésticas ou até mesmo visitas a amigos. Um experimento levado a cabo na década de 1990 explorou o tema, ao colocar oito homens saudáveis em condições semelhantes às do inverno na Europa e na América do Norte: luz natural e artificial por 10 horas diárias e escuridão por 14 horas. Os participantes começaram de fato a dormir em dois períodos de cerca de quatro horas cada um, intercalados por até três horas em um tranquilo estado de vigília.
Sono e saúde
Embora o ritmo de nosso metabolismo caia apenas 10% enquanto dormimos, prescindir do sono representa um risco elevado para a saúde, como mostram alguns estudos. Ratos privados do sono em laboratório podem chegar à morte, afetados por infecções, lesões de pele e incapacidade de regular a temperatura corporal; eles perdem peso rapidamente, mesmo que se fartem de comer.
Em uma pesquisa de seis anos realizada pela Universidade da Califórnia com a Sociedade Americana de Câncer, envolvendo mais de 1 milhão de adultos, descobriu-se uma taxa de mortalidade consideravelmente mais alta entre aqueles que dormiram menos de quatro horas ou mais de oito horas por noite. Outro estudo com 10 mil adultos revelou que aqueles que dormiam menos de sete horas por noite tinham tendência maior a ficarem obesos. Pouco sono está relacionado a pressão sanguínea alta, depressão, problemas cardíacos e de açúcar no sangue. Bastam três noites de sono irregular para causar problemas no controle dos níveis de açúcar no sangue.
Pesquisas recentes mostram que o sono dá uma contribuição importante para o bom funcionamento do sistema imunológico. Uma delas, realizada em 2007 pela equipe do Departamento de Neuroendocrinologia da Universidade de Lubeck (Alemanha), comandada por Jan Born, revelou um aumento nas concentrações de interleucina-7 (proteína integrante do sistema imunológico), em especial durante o sono REM (sigla de rapid eye movement, ou movimento rápido do olho. No ano passado, a mesma equipe descobriu que em uma única noite de sono o organismo multiplica por dois o número de anticorpos que as pessoas produzem quando vacinadas contra a hepatite A.
DORMIR FAVORECE O BOM FUNCIONAMENTO DO SISTEMA IMUNOLÓGICO, A RETENÇÃO DE CONHECIMENTOS, O DISCERNIMENTO E A INTUIÇÃO
“O sistema imunológico tem de desenvolver uma estratégia de longo prazo para um novo antígeno, o que requer memória”, afirmou Born. “Talvez o sono permita que nosso sistema imunológico forme memórias de longo prazo e insights de descoberta, quase como nosso cérebro os forma durante o sono.”
Aprendizado
Dormir, mesmo que por alguns minutos, parece ser um fator importante para reter conhecimentos adquiridos. Um estudo realizado em 2000 pela equipe do psiquiatra Robert Stickgold, diretor do Centro do Sono e da Cognição da Escola de Medicina de Harvard, analisou a importância do sono no desempenho por meio de testes feitos com indivíduos em dois momentos diferentes: depois de uma noite de privação de sono e alguns dias mais tarde, quando os participantes já haviam colocado o sono em dia. Segundo os pesquisadores, depois de uma boa noite de sono os participantes executaram sua tarefa melhor no dia seguinte e foram se aprimorando nos três dias subsequentes. Já depois de uma noite sem sono, essas pessoas não mostraram nenhuma melhora em seu desempenho, nem mesmo quando foram autorizadas a dormir à vontade por duas noites seguidas.
Memória
“Nossos sistemas de memória ainda estão ativos enquanto dormimos”, afirma o neurocientista norte-americano John Rudoy, da Northwestern University. Ele e sua equipe divulgaram em novembro de 2009 um estudo na revista Science no qual revelam que a audição de determinados sons durante o sono pode fortalecer lembranças de informações adquiridas em estado de vigília. Segundo Rudoy, é possível reforçar memórias já existentes durante o sono por meio de estímulos externos, mas não há como aprender coisas novas nesse período.
Percepção Aguçada
O sono favorece nosso discernimento e nossa intui ção, conforme um estudo feito em 2004 pelo neuroendocrinologista Jan Born e seus colegas da Universidade de Lubeck. Os pesquisadores chamaram 66 pessoas para resolver uma sequência de problemas. Os participantes foram divididos em três grupos: os treinados pela manhã, que assim ficavam acordados por pelo menos oito horas; os treinados à noite que eram privados de sono por pelo menos oito horas; e os treinados à noite que iam repousar em seguida. Dormir mais que dobrou a probabilidade de ganhar um insight que levava a uma regra decisiva para a resolução dos problemas.
Os diferentes sonos no cérebro
A intensidade do sono é bem variada nas diversas partes do cérebro. Em 2000, o cientista Alexander Borbely, da Universidade de Zurique (Suíça), decidiu investigar o tema e aparou os pelos do bigode de uma das faces de um rato. São os bigodes que permitem a orientação espacial desses animais, e cada um de seus pelos é associado a uma minúscula área do córtex. Borbely descobriu que a parte do córtex relacionada aos pelos intactos apresentava padrões de eletroencefalograma (EEG) mais fortes durante o sono não REM (NREM, o sono mais leve) subsequente, como se os neurônios envolvidos estivessem mais sonolentos por terem estado mais ativos antes. Pesquisas com humanos mostraram algo similar: pequenas áreas do cérebro estimuladas durante o dia dormiam mais “pesadamente”.
Genes do sono
Giulio Tononi e Ciara Cirello, da Universidade de Wisconsin (Estados Unidos), descobriram que alguns genes desenvolvem uma intensa atividade apenas durante o sono. Para Tononi, sua função é tranquilizar a ação das sinapses (as comunicações entre neurônios via neurotransmissores). “Durante o sono”, diz Tononi, “você vai mudar uma série de circuitos em seu cérebro e fortalecer muitas sinapses. A força total de uma sinapse é chamada de seu peso. Assim, você poderia dizer lá pelo fim do dia que seus neurônios estão mais pesados do que estavam pela manhã. Acreditamos que o sono e os genes que o regulam reduzem a escala dessas sinapses e as ajudam a livrar-se de um pouco do seu excesso de peso.”
Tononi e Ciara encaram o sono sob um prisma original, que leva em consideração conceitos emprestados da economia. Segundo eles, “há um custo para todo o aprendizado que você consegue enquanto acordado: o sono é o preço que pagamos por um instrumento de aprendizado tão fantástico e oneroso como é o cérebro”.
O sono entre os animais
Cada espécie tem um intervalo de tempo mais adequado para dormir – as oito horas do homem não são necessariamente a duração do sono comum para outros animais. Dois fatores interferem basicamente nesse quadro: o grau de perigo corrido pelas espécies em relação a seus predadores naturais (quanto mais vulneráveis, menor é a duração do sono) e a estocagem de alimentos (quanto maior o tempo despendido nessa atividade, menor é a duração do sono). Girafas, elefantes e vacas, por exemplo, dormem apenas entre três e quatro horas por noite. Já cães, patos e jaguares passam 11 horas nesse estado; gatos, 12 horas; leões e tigres, entre 14 e 16 horas; e tatus e morcegos, entre 18 e 19 horas. As moscas-de-fruta intercalam fases de repouso profundo e atividade.
A duração não é o único detalhe a diferenciar o sono de humanos e outros animais. Os golfinhos e determinados pássaros, por exemplo, põem um hemisfério cerebral de cada vez para dormir, de maneira que podem manter-se em movimento enquanto se entregam ao sono. Os ornitorrincos, sempre bizarros, passam cerca de 10 horas diárias no sono denominado REM (sigla de rapid eye movement, ou movimento rápido do olho), o estado associado ao sonhos; as girafas, por seu lado, despendem apenas alguns minutos nele.