23/05/2025 - 15:55
Polícia Federal descobriu “fábrica” de agentes secretos do Kremlin, segundo “The New York Times”. Fragilidades no registro civil e até aulas de forró apoiaram os disfarces.Durante anos, espiões da Rússia fizeram do Brasil um esconderijo para apagar seu passado e construir falsas identidades como brasileiros. Apesar da distância cultural e geográfica com o seu país de origem, eles enganaram desde pessoas comuns até o governo federal. Para se camuflarem no país, adotaram nomes falsos, criaram relacionamentos, abriram empresas, aprenderam o português e um deles até fez aulas de forró, conforme mostram investigações da imprensa.
Nesta semana, o jornal The New York Times revelou que o Brasil se tornou uma “fábrica” de agentes secretos do Kremlin, descoberta pela Polícia Federal. A reportagem atribui a uma série de fatores a escolha do país para abrigar espiões que, mais tarde, poderiam viajar o mundo espionando os alvos estratégicos da Rússia.
Dentre os apontados atrativos para espiões no Brasil, estão a facilidade de obter certidões de nascimento, sobretudo em áreas rurais, e a diversidade de fenótipos na população brasileira, a mais miscigenada do mundo. Além disso, o passaporte brasileiro permite circular de forma relativamente pouco restrita, ou sem levantar suspeitas, por vários países.
Forró russo
A primeira máscara a cair foi a do agente Sergey Cherkasov, que vivia no Brasil sob o nome de Victor Müller Ferreira até 2022. Para se passar por brasileiro, ele conseguiu documentos legítimos, incluindo passaporte e título de eleitor. O espião se dizia filho de português com brasileira e criado na Argentina.
O russo até cursou aulas de forró e frequentou sambas em São Paulo. Segundo uma reportagem da Rede Globo, seu professor era Pheliphe Britto, dono de uma escola de dança homônima. À DW, ele contou que o espião falava um ótimo português e procurou as aulas depois de ter sido chamado para dançar por várias mulheres numa festa de forró. Na escola, arrumou uma namorada brasileira.
“Era o cara mais simpático do mundo. Ele ia na minha casa, fazia churrasco lá, a gente fazia festa. Ele ia todos os dias na aula, porque dizia que era uma terapia”, conta. Chamando a história de “uma loucura”, o professor só descobriu a verdadeira identidade do aluno quando foi abordado pela imprensa americana e brasileira. “Não dá para entender até hoje.”
Cherkasov viajou para a Holanda a fim de atuar como estagiário no Tribunal Penal Internacional (TPI). A Rússia não reconhece a corte sediada em Haia, que emitiria um mandado de prisão contra o presidente Vladimir Putin por alegados crimes de guerra na Ucrânia em março de 2023.
Foi então que a polícia holandesa negou sua entrada e o mandou de volta ao Brasil que a Polícia Federal foi alertada pelos Estados Unidos sobre as suspeitas. Era o pontapé da Operação Leste da Polícia Federal, cuja abrangência e entremeios foram revelados pelo jornal americano nesta semana.
Ao pousar em solo brasileiro, Cherkasov insistiu que era cidadão nacional ao longo de dois meses e, desde dezembro de 2022, cumpre pena na Penitenciária Federal de Brasília. Ele é o único que permanece preso no Brasil, com um pedido de extradição da Rússia, que alegou se tratar de um traficante de drogas. Em 2023, a extradição foi rejeitada pelo Brasil.
Contratos com governo federal
Já o agente russo Artem Shmyrev viveu no Brasil por seis anos, até janeiro de 2023, se valendo de uma identidade falsa sob o nome de Gerhard Daniel Campos Wittich. O suposto cidadão brasileiro teria nascido em 1986 no Rio de Janeiro, segundo uma certidão de nascimento criada em 2015.
Mais tarde, a polícia descobriria que a mulher registrada como sua mãe já estava morta e nunca tivera filhos. O suposto pai nunca foi localizado, disse o The New York Times.
Shmyrev comandava a empresa 3D Rio, que fazia impressões tridimensionais, morava em um apartamento de luxo no Rio de Janeiro e mantinha até um relacionamento com uma brasileira. Mas, segundo o jornal, ele era também casado com a espiã russa Irina Shmyreva.
Um perfil da 3D Rio ainda no ar numa rede social indica que a empresa operava na rua transversal ao Consulado dos Estados Unidos no Rio, a três minutos de distância a pé. Segundo a própria descrição, a empresa oferecia projetos desde a modelagem e prototipagem do produto até a impressão tridimensional.
O Portal da Transparência mostra que os serviços foram prestados, inclusive, para o governo federal. Contratos com o Centro Tecnológico do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha, o Batalhão de Polícia do Exército e o Centro Técnico do Audiovisual, vinculado ao Ministério da Cultura, somaram mais de R$ 26 mil entre 2020 e 2022.
Funcionários enganados
A identidade de Shmyrev era tão convincente que ninguém em seu círculo desconfiava, nem mesmo os funcionários da empresa. Ele falava português fluentemente, atribuindo o sotaque a uma infância na Áustria, segundo o The New York Times.
Numa nota compartilhada no perfil da empresa, os empregados afirmaram ter primeiro sido pegos de surpresa quando o dono da empresa desapareceu. Em janeiro de 2023, pouco antes de ser descoberto pela Polícia Federal, ele saiu numa suposta viagem de férias, parou de responder a mensagens e nunca mais retornou ao país, de acordo com a imprensa.
Meses depois, os empregados ficaram ainda mais chocados ao descobrir pela imprensa que o chefe era parte de uma rede de espionagem envolvendo agentes russos.
“Muitas dúvidas, medos e inseguranças se abateram sobre todos por aqui, já que estamos falando de um trabalho que envolve vidas reais de pessoas reais e seus sustentos”, afirmou o comunicado, que anunciava a formação de uma nova empresa pelos funcionários remanescentes. O texto dizia ainda que eles colaboravam com as investigações e trabalhos jurídicos, sem ter relação com atividades de espionagem.
A DW entrou em contato com a nova empresa, que afirmou que os antigos funcionário da 3D Rio já deixaram os postos de trabalho.
Empresas de fachada
A apuração do The New York Times fala num total de nove agentes secretos que teriam atuado no exterior se passando por brasileiros. Pelo menos outros dois, que deixaram o Brasil a tempo de não serem pegos, também abriram empresas no país.
Segundo apuração do jornal O Globo após a publicação da reportagem do jornal americano, Vladimir Aleksandrovich Danilov e Yekaterina Leonidovna Danilova tinham um negócio de antiguidades e objetos usados e outro de comércio de objetos de arte, ambos no mesmo endereço da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Eles se passavam, respectivamente, por Manuel Francisco Steinbruck Pereira e Adriana Carolina Costa Silva Pereira. Acredita-se que eles tenham fugido para Portugal em 2018 e, depois, desaparecido.
No ano passado, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) descobriu um espião russo que atuava no Brasil ao se passar por diplomata da Embaixada da Rússia em Brasília, de acordo com informação divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo. Identificado como Serguei Alexandrovitch Chumilov, ele trabalhava cooptando brasileiros como informantes e deixou o Brasil depois de ter sido descoberto.