01/04/2010 - 0:00
Algumas perguntas que estão, mais do que nunca, na ordem do dia: você precisa mesmo levar todas as suas compras de supermercado em sacolas plásticas? É indispensável ter na garagem aquele utilitário esportivo tão imponente quanto gastador? E o banho de 15 minutos, que tal encurtá-lo?
A revisão dos atuais (e inviáveis) modelos de consumo já havia sido objeto de um contundente alerta em novembro de 2009, dado pela organização internacional Global Footprint Network: de acordo com um estudo produzido por ela, a Terra precisa atualmente de quase 18 meses para produzir os serviços ecológicos que os quase 7 bilhões de humanos utilizam em um ano.
segundo o Worldwatch institute, um exame cuidadoso da rotina dos membros da “classe consumidora global” mostra que há várias situações nas quais é possível consumir de forma mais sensata e sustentável.
Invertendo a equação, estamos consumindo praticamente um planeta e meio em 12 meses. Não é preciso ser gênio para perceber que a conta não fecha. No atual ritmo, dizem os autores do estudo, no início da década de 2030, precisaremos de duas Terras para atender a nossa demanda anual – um nível tão alto de gasto ecológico que poderá causar um colapso de ecossistemas de grandes proporções.
No início deste ano, a advertência foi renovada, algumas oitavas acima, pelo Worldwatch Institute – uma das mais importantes instituições de pesquisa sobre desenvolvimento sustentável do mundo, sediada em Washington –, por meio de um impecável relatório, o State of the World 2010 – Transforming Cultures: From Consumerism to Sustainability (Estado do Mundo 2010 – Transformando Culturas: do Consumismo à Sustentabilidade). O trabalho, assinado por 60 autores, se apoia em uma profusão de números e informações, demonstrativos do descalabro consumista em que o mundo está mergulhado, para propor uma transformação radical nesse quadro.
“Os padrões culturais são a causa de uma convergência sem precedentes de problemas econômicos e sociais, incluindo a mudança do clima, uma epidemia de obesidade, um enorme declínio na biodiversidade, perda de terras agricultáveis e produção de resíduos tóxicos”, afirma Erik Assadourian, diretor do relatório. Devolver a saúde a esse quadro exige uma proposta de aplicação urgente: a necessidade de uma transformação radical dos padrões culturais dominantes, que segundo o economista bengali Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz de 2006, assinala no prefácio, envolve “uma das maiores mudanças culturais imagináveis: a partir de culturas de consumo para as culturas de sustentabilidade”.
NO RITMO DE HOJE, NO INÍCIO DOS ANOS 2030 PRECISAREMOS DE DUAS TERRAS PARA ATENDER A NOSSA DEMANDA ANUAL
Uma das iniciativas que se encaixam na proposta de um consumo mais sustentável é a incorporação ao cardápio de alimentos saudáveis, produzidos no local de acordo com princípios ambientais.
Como toda ação que mexe fundo na mente humana, essa promete inúmeras dificuldades. Afinal, o consumismo – “uma orientação cultural que leva as pessoas a encontrar sentido, felicidade e aceitação por aquilo que consomem”, na definição do Worldwatch Institute – pode parecer, ao olhar comum, algo indistinto da necessidade de consumir. De repente vamos deixar de comer, beber, nos vestir, tomar banho, usar meios de transporte ou investir em lazer? Claro que não. Mas um exame detalhado da rotina dos mais de 2 bilhões de pessoas que, segundo a instituição norte-americana, integram a “classe consumidora global” (o que muito provavelmente inclui você, leitor desta revista) revela que há vários aspectos em que é possível, sim, consumir com mais sensatez e economia de recursos.
Deve-se salientar, porém, que temos de aprender como fazer isso em ritmo acelerado, porque a inércia, nesse caso, é sinônimo de implosão do consumismo e de riscos substanciais para a própria necessidade de consumir. A discussão proposta pelo Worldwatch Institute precede, inclusive a grande polêmica sobre o aquecimento global que, bem ou mal, tem mobilizado a maior parte dos países do mundo.
Como menciona o estudo, quaisquer medidas adotadas pelos governos ou iniciativas científicas nesse sentido serão inúteis sem que as pessoas adotem um modelo mais simples de vida. “Para prosperar no futuro, as sociedades humanas terão de mudar suas culturas a fim de que a sustentabilidade se transforme na norma e o consumo excessivo, em tabu”, afirma Assadourian.
O State of the World 2010 informa que, em 2006, o consumo total no mundo em bens e serviços atingiu US$ 30,5 trilhões – 28% a mais do que dez anos antes, observa Fátima Cardoso, do Instituto Akatu, em texto que aborda o estudo. À medida que sua renda cresce, as pessoas usam mais recursos na aquisição de bens de consumo. “Somente em 2008, foram vendidos no mundo 68 milhões de veículos, 85 milhões de refrigeradores, 297 milhões de computadores e 1,2 bilhão de telefones celulares”, ressalta Fátima.
O aumento de demanda implica, naturalmente, um incremento na utilização de recursos naturais. Ao longo de 55 anos, entre 1950 e 2005, a produção mundial de metais foi multiplicada por 6; o consumo de petróleo, por 8; e o de gás natural, por 14.
A distribuição desse consumo retrata a desigualdade mundial. Em 2006, os 65 países com maior renda – cuja maioria dos habitantes, que totalizam 16% da população mundial, esbanja consumismo – responderam por 78% das despesas planetárias em bens e serviços. Líderes disparados dessa lista de desproporção, os Estados Unidos conseguiram, com apenas 5% da população terrestre, abocanhar 32% do consumo do planeta. “Se todos vivessem como os americanos, o planeta só comportaria uma população de 1,4 bilhão de pessoas”, sublinha Fátima no texto.
Outro número ressaltado no relatório é o consumo médio de recursos naturais feito diariamente por um norte-americano: espantosos 88 quilos, ou seja, mais do que o peso da maior parte da população do país. Um europeu médio consome 43 quilos – menos que a metade dos norte-americanos, mas ainda assim um valor muito alto.
O State of the World 2010 mostra, no entanto, que não basta apenas europeus e norte-americanos fazerem uma revisão radical em seus modelos de consumo. Um padrão considerado médio, como o da Tailândia ou o da Jordânia, já supera o nível adequado. (A propósito, o estudo do Global Footprint Network já mencionava que, atualmente, 80% dos países usam mais biocapacidade do que a disponível em seu território.) Para agravar o quadro, a poderosa expansão econômica da China e da Índia – os dois países mais populosos da Terra – está despejando um formidável contingente de pessoas na “classe consumidora global”, com impacto ainda difícil de prever.
Isso só aumenta a necessidade de uma revolução global nesse setor, que, quando estiver concretizada, deverá mudar substancialmente nosso cotidiano. O relatório traz diversos casos em que iniciativas por vezes aparentemente simples geram reflexos benéficos em diversos setores. Um desses exemplos é o de cardápios escolares que estão sendo reformulados na Itália e em outros países para usar alimentos saudáveis, produzidos no local e de acordo com princípios ambientais.
CHINA E ÍNDIA ESTÃO COLOCANDO UM ENORME NÚMERO DE PESSOAS NA CLASSE CONSUMIDORA GLOBAL E O IMPACTO DISSO AINDA É DIFÍCIL DE PREVER
Outras ideias mencionadas no estudo são o cultivo de alimentos em hortas comunitárias, o empréstimo (em vez da compra) de livros e brinquedos em bibliotecas, a troca rotineira do transporte individual pelo coletivo e, inclusive, o processo de manufatura dos produtos: eles teriam de ser elaborados para durar a vida inteira e ser inteiramente recicláveis.
À primeira vista, o relatório do Worldwatch Institute pode parecer quixotesco em seu desejo de transformar bilhões de corações e mentes em um prazo relativamente curto. Mas talvez não haja melhor momento para isso do que agora, reconhece seu presidente, Christopher Flavin: “Enquanto o mundo luta para se recuperar da mais séria crise econômica global desde a Grande Depressão, temos uma oportunidade sem precedentes para nos afastarmos do consumismo. No fim, o instinto humano de sobrevivência deve triunfar sobre a compulsão de consumir a qualquer custo.”
ALGO DE PODRE NO REINO DA ITÁLIA
Por Luis Pellegrini
E no resto do mundo também. Em 1990, percebi que algo muito estranho acontecia no meu país de origem, a Itália. Eram os dias da Copa do Mundo de futebol quando cheguei a Roma para ser hóspede na casa de um velho amigo, no bairro Nomentano.
Primeira surpresa: As calçadas do Corso Trieste, a mais bonita artéria do bairro, estavam literalmente forradas com espessos tapetes de falsa grama verde. Chovera pouco antes, encharcando os muitos quilômetros de erva plástica. Quando a gente caminhava sobre ela, ouvia o barulho dos sapatos fazendo flop-flop e respingando água para os lados. “Para que serve isso?”, perguntei, atônito, a meu amigo, Inigo zammarano. Ele, que não é romano e sim napolitano, respondeu com a fleuma habitual de seus conterrâneos: “Para encher ainda mais os bolsos dos políticos que administram a cidade. Imagine o que eles não ganharam de comissão só com essa falsa grama, totalmente inútil e além do mais muito feia…”
Segunda surpresa: no segundo dia dessa viagem, às 9 horas desci à rua para tomar meu café da manhã, um capuccino e um croissant. Pois bem: o garçom que me serviu usava uma camisa Valentino de seda pura, toda decorada com os “Vês” da grife e que, eu sabia, custava a bagatela de uS$ 800! Na tarde anterior, por coincidência, vira a camisa na vitrine da butique Valentino, na Piazza di Spagna, e me espantara com o preço.
Terceira Surpresa: Inigo resolveu organizar um jantar em minha homenagem e convidou uns dez amigos e amigas dos tempos em que éramos todos estudantes em Roma. Não nos víamos havia uns 15 anos e aquela seria uma maravilhosa oportunidade de reencontro. No jantar, comeu-se e bebeu-se à italiana, de modo farto e prazeroso. Tudo corria muito bem até que, na hora do cafezinho servido na sala, senti que algo estava errado.
Estavam todos chiquérrimos, com roupas de grife, riam muito e havia quase três horas não falavam de outra coisa que não fossem… roupas de grife e costureiros. Ou, como gostavam de dizer, estilistas. Teciam considerações importantíssimas sobre o tamanho da barra das calças do Versace naquele ano, do novo ponto de tricô do Missoni, do corte enviesado do Armani, das musselinas dos longos do Valentino, das fendas supersexy das saias de Cavalli e Dolce & Gabbana.
Tínhamos sido, no entanto, eu e as demais pessoas do grupo, colegas de escola, amigos íntimos, namorados, amantes e ninguém ainda me perguntara como eu estava, onde morava, se casara, se tinha filhos, em que trabalhava, se estava vivo, se já morrera e era apenas um fantasma. Nada. Quando tentei mudar o rumo das conversas e comecei a fazer perguntas pessoais, respondiam com monossílabos e rapidamente voltavam aos comentários de corte e costura.
Eu ouvia aquele blablablá ao mesmo tempo que imagens dos meus 20 anos, quando fui para Roma trabalhar e estudar, e quando conheci aquele pessoal todo, saltavam da memória, incitando-me à comparação. Quando cheguei lá, no final da década de 60, fui morar naquele mesmo bairro. Lembro-me bem que, nas manhãs de sábado, os homens da rua se reuniam nas calçadas para lavar seus carros. Carrinhos baratos da Fiat, Cinquecentos, Seicentos, comprados à prestação.
O país, naqueles tempos que hoje me parecem pré-históricos, ressurgia das cinzas da Segunda Guerra, última de uma sequência multissecular de conflitos catastróficos e penosos. Mas os valores tradicionais de economia rígida, de poupança, de consumir apenas o necessário e não desperdiçar nada – típicos da cultura italiana e da europeia em geral – estavam muito vivos na memória das pessoas.
Como fora possível que, em apenas 15 anos, tudo isso se perdesse, arrastado no tsunami insensato da società del benessere, a “sociedade do conforto e da prosperidade” preconizada pelo Partido Socialista, então no poder, comandado por Bettino Craxi e sua gangue? Algo estava errado, podre, no reino da Itália.
O desmoronamento de Craxi e dos que lhe faziam a corte aconteceu logo em seguida, no processo de assepsia policial e judicial conhecido como mani pulite (“mãos limpas”), e provou isso. Mas a verdade é que Craxi e cia. eram apenas a ponta do iceberg, o topo de uma pirâmide de equívocos que começava bem mais embaixo. Eram apenas o sintoma mais evidente de um fenômeno muito mais importante: a perigosa invasão da identidade tradicional italiana pela cultura da produtividade e do consumismo insustentáveis, oriunda do capitalismo selvagem norte-americano.
Cada povo tem o governo que merece, diziam os romanos antigos. Correto. Embora ainda mais apropriado fosse dizer que cada governo reflete o povo que o elegeu.
10 AÇÕES PARA INÍCIO IMEDIATO
Consumir (e poluir) menos não significa renunciar a tudo imediatamente. Eis o que se pode fazer, com pouco esforço, a partir de agora.
1 Beba água da torneira filtrada, em vez da água mineral embalada em garrafas de plástico
2 Coma sobretudo frutas e verduras da estação. Prefira alimentos frescos, não embalados
3 Diminua ao máximo a ingestão de alimentos congelados – comida em geral de pouca qualidade, cuja produção requer o consumo de muita energia.
4 Quando possível, substitua a carne por um prato de vegetais. A pecuária de bovinos (sobretudo a intensiva) é uma importante fonte de poluição. Além disso, o consumo excessivo de proteínas faz mal à saúde.
5 Antes de ligar o automóvel, pergunte-se: “É realmente indispensável que eu use este meio de transporte?”
6 Substitua as lâmpadas incandescentes pelas fluorescentes, que consomem muito menos energia. Em vários países, sobretudo europeus, as lâmpadas normais não serão mais comercializadas a partir deste ano.
7 Evite ao máximo o uso de sacolas de plástico. Habitue-se a usar uma shopping bag, um sacolão de compras de algodão que pode ser lavado e reutilizado muitas vezes.
8 Não use pratos e copos de plástico descartáveis. Utilize pratos e vasilhas de plástico, louça ou outro material lavável e reutilizável, ou no máximo pratos em plástico 100% biodegradável.
9 Substitua os guardanapos de papel por guardanapos de algodão.
10 No Natal e nos aniversários, presenteie as crianças com brinquedos que não precisem de pilhas e que usem a menor quantidade de plástico possível. Há grande variedade de brinquedos não poluidores, como os feitos com tecidos ou madeira colorida.
PEGADA ECOLÓGICA
A pegada ecológica indica quanto território é usado por um indivíduo, uma família, uma cidade, uma região, um país ou a humanidade inteira para produzir os recursos que consome e absorver os detritos que gera. a pegada ecológica da humanidade é atualmente de 2,2 hectares (22 mil metros quadrados) per capita. em países desenvolvidos, como a itália e a frança, ela gira ao redor de 5 hectares (50 mil m²). o cálculo da pegada ecológica pode ser feito em sites como o da WWf Brasil (www.wwf.org.br).
EVOLUÇÃO DA CONSCIÊNCIA CONSUMISTA
Para o sociólogo italiano Franco Ferrarotto, já é possível detectar na sociedade atual da produtividade e do consumismo uma mudança de estado de consciência. “A crise, que antes era apenas financeira e dizia respeito aos bancos e à sua ‘bulimia’, ou seja, a desmesurada intenção de produzir lucro a qualquer preço, agora atinge muito mais o plano produtivo e, assim sendo, alcança em primeiro lugar a empresa média: as encomendas diminuíram, é preciso que um número maior de trabalhadores permaneça em casa”, diz Ferrarotto. No caso dos europeus, as consequências da crise já são bem evidentes. As pessoas poupam mais, cortam ao máximo o consumo supérfluo: vai-se menos a restaurantes, compram-se roupas usadas, a classe média interrompe as lições de piano, o adolescente deixa de ganhar sua moto no aniversário. Tudo isso é luxo e pode esperar.