01/03/2019 - 17:15
No fim do ano passado, a indígena Joênia Wapichana foi destaque em duas disputas acirradas, uma nacional e outra internacional. Dentro do Brasil, foi eleita deputada federal pelo Estado de Roraima (candidata pela Rede Sustentabilidade). No exterior, recebeu o prêmio das Nações Unidas (ONU) de referência na defesa dos Direitos Humanos no mundo – passando a fazer parte de um seleto grupo formado por personalidades como a ativista paquistanesa Malala Yusafzai, o pastor norte-americano Martin Luther King e o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela.
Formada em Direito, em 1997 se tornou a primeira advogada índia do Brasil e antes disso já era pioneira na luta pelas causas do seu povo. Em sua campanha, Joênia destacou como prioridades a defesa dos direitos coletivos dos indígenas, o desenvolvimento sustentável no Estado de Roraima, respeitando as diversidades e o combate à corrupção.
Antes mesmo de assumir seu posto no Congresso, uma série de mudanças estruturais foram realizadas pelo governo de Jair Bolsonaro com impacto direto nos povos indígenas, anunciando que os novos tempos trazem maiores desafios do que os conhecidos até então por ela. A demarcação de terra indígenas foi transferida do Ministério do Meio Ambiente para o da Agricultura, a Funai foi para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (antes responsabilidade do Ministério da Justiça), sob comando de uma pessoa de perfil religioso.
Em entrevista exclusiva à PLANETA, contou que no novo cargo, além de impedir retrocessos na área, espera poder avançar.
PLANETA – Quais seus principais receios após essas mudanças estruturais?
JOÊNIA WAPICHANA – As mudanças foram drásticas. E nossa perspectiva é de, pelo menos, assegurar as conquistas de 1988. Mas vemos que está havendo uma forte pressão pelos interesses pelo lado do governo no sentido de reverter essas conquistas. A gente está aqui para dar o contraponto. Estamos vendo decisões do governo de querer desmantelar e desestruturar órgãos imprescindíveis para a proteção dos povos indígenas tais como demarcação de terras, licenciamento ambiental, monitoramento. Órgãos que a meu ver deveriam ser fortalecidos. Deveriam receber a devida importância, porque, tal como a Funai, esses órgãos são responsáveis por 13% do território nacional e têm uma significância muito grande em termos de conservação da biodiversidade, em termos de valorização e proteção à cultura. A megadiversidade que temos ainda hoje é graças a esses 13%. E já estamos atrasados nos prazos dados pela Constituição de 1988, então temos uma dívida com povos indígenas de avançar nessa matéria. Por outro lado temos que verificar alguns retrocessos em relação aos compromissos que o Brasil tinha avançado há algum tempo, como os compromissos internacionais sobre a política do clima, sobre a questão dos serviços florestais e a Amazônia.
PLANETA – Você algum ponto positivo a nova situação?
A coisa positiva é que tem muitos novos parlamentares que também vem com esse olhar da sustentabilidade, da renovação. Temos alternativas para serem debatidas e consolidadas para serem transformadas em políticas públicas para que não prejudique a coletividade e os nossos bens coletivos. Essa é minha esperança, de que essas pessoas que estão chegando novas aqui não tenham esse vício de querer defender interesses privados e individuais. Que não tenham esse olhar apenas de cobiça, de exploração, apenas de ser uma estratégia de desenvolvimento, mas também ver alternativas. Não é todo mundo que entende que o meio ambiente, as questões indígenas e sociais interferem negativamente no desenvolvimento econômico. Eu vejo uma unidade entre povos indígenas, meio ambiente, cultura e biodiversidade: não se pode proteger um sem proteger o outro.
PLANETA – Quais são suas prioridades no cargo?
JOÊNIA WAPICHANA – Meu trabalho como parlamentar vai insistir nisso, buscando alianças com pessoas que também entendem da mesma forma, tragam um espírito renovador e progressista no sentido de avançar e não retroceder. Por isso na primeira semana de atividades já sugeri 8 emendas à Medida Provisória 870 (para reverter aquelas mudanças de que falamos no início) e protocolei aquele Projeto de Lei da Rede Sustentabilidade que torna esse tipo de crime ambiental que aconteceu em Brumadinho como hediondo, para que sejam mais severas as punições. Vou continuar nesse ritmo. Temos um trabalho em conjunto com outras Frentes de dar visibilidade às causas indígenas, como a criação da Frente Parlamentar Mista de defesa dos povos indígenas. Já estamos coletando assinaturas para formalização da Frente. Quando for criada a Frente Parlamentar Mista, quero ir pra Brumadinho visitar os indígenas afetados para ver como ficou situação deles – quero ver como estão sendo tratados, como está a situação de vida deles, os direitos deles, porque eles tiveram que sair das terras.
PLANETA – O que achou da postura do presidente Bolsonaro frente ao desastre da Vale em Brumadinho e das ações tomadas por ele?
JOÊNIA WAPICHANA – Uma coisa é dar apoio naquele dado momento – uma questão de urgência de atender às vítimas -, e outra é realmente tomar medidas que sejam eficazes, efetivas e permanentes para proteger tudo o que está em discussão aí. Sejam questões ambientais, sejam questões humanas, da biodiversidade. Quero ver o que vai ser feito em relação a isso. Temos a oportunidade de evitar outros desastres desse tipo, já tivemos várias propostas. O alerta já tinha sido dado no caso de Mariana. E se insistiu nisso e não se prestou atenção e aconteceu de novo, em Brumadinho. Mas o presidente já falou em liberar a mineração – e a agricultura também – em terras indígenas. Não adianta o presidente se colocar de uma forma em Brumadinho e ter outro olhar para a Amazônia, de exploração e degradação ambiental. Será que ele terá mesmo um posicionamento de seriedade e responsabilidade quando se discute exploração de minérios em terras indígenas? Tem que ter coerência no que se fala e no que se faz. Será que esse realmente é o caminho que o Brasil quer seguir? Sendo cúmplice de um desastre atrás do outro.
PLANETA – Em um caso já vimos o estrago que pode causar. E no outro caso ele estaria abrindo as portas para o estrago…
JOÊNIA WAPICHANA – É o alerta. Ele poderia aproveitar e abrir uma discussão no sentido de proteção e não de exploração. Lá em Roraima ouvimos a notícia de que haveria manifestação de garimpeiros para avançar nessa pauta. Mas será que não aprendemos ainda? Será que as pessoas não entendem que a natureza sofre, que existe uma consequência nisso e que vai afetar todo mundo? Não se pode justificar a abertura de garimpo em terras indígenas pela falta de políticas públicas, pela falta de acesso a emprego, pela falta de uma economia estável. Tem que haver políticas sociais para aquelas famílias desassistidas que acham que o garimpo é a solução para a vida delas e que os índios são inimigos porque não deixam garimpar nas terras deles ou porque é muita terra para pouca gente ou porque os índios é que estão nas terras que têm minérios. Vamos ter muito trabalho pela frente. Sei que vou ter muita dificuldade no sentido de convencimento. Tem muita gente que acha que a questão econômica tem que ser sobreposta a todas as outras questões. Mas vou contar muito com a sociedade civil, para que a sociedade brasileira acompanhe e cobre dos seus representantes um posicionamento que seja coerente com a legislação e com interesses realmente coletivos.
PLANETA – Você acredita que o prêmio da ONU ajuda em algo?
O fato de a ONU me reconhecer me coloca como aquela que está sempre defendendo o lado bom da história, no sentido de ter importância defender esses direitos. Mas se vai me dar algo mais, não sei. Sei que já me deu destaque na mídia e mais incentivo para que eu continue a fazer esses trabalhos em prol do coletivo.