De um platô de Puerto Williams, o povoado mais austral do mundo, é possível contemplar a amplidão do lago Fagnano.

No início havia o karukinka, “nossa terra”, um vasto território que incluía a Ilha da Terra do Fogo, no extremo sul do nosso continente. O Oceano Atlântico de um lado, as montanhas nevadas dos Andes do outro, constituíam os limi- Ntes. Era o lugar onde a terra acabava. Ali habitavam, há 12 mil anos, os selk’nan, aborígines coletores e caçadores. Suas últimas imagens, tiradas ao redor de 1880, pouco antes de seu total extermínio, mostram um povo de estatura alta, vestido com mantas de peles de animais ou com corpos pintados e usando máscaras. Naquele mesmo solo onde os selk’nan viveram, estamos prestes a embarcar numa aventura há muito sonhada: atravessar a Terra do Fogo.

Na cidade chilena de Punta Arenas, uma das portas de entrada para a Terra do Fogo, lembro de uma reportagem do fotógrafo Cláudio Almarzo, lida há anos, sobre a travessia que ele fez a cavalo da Cordilheira Darwin até o Lago Fagnano. Sua expedição me instigou a conhecer a região. Nossa viagem, porém, está prevista para começar com o ferryboat partindo de Punta Arenas para a cidade de Porvenir, na Terra do Fogo. Mas, por um erro de horário, nosso grupo de oito jornalistas não fez a travessia. Esse primeiro desencontro assinalou a marca registrada de toda a viagem: no dia-a-dia, os itinerários idealizados foram sendo substituídos por novos e insuspeitados destinos, numa sucessão de surpresas.

O ROTEIRO INICIAL previa navegarmos pela Baía Inútil e pelo Fiorde Almirantazgo até chegarmos ao Glaciar Marinelli, na Cordilheira Darwin. Depois de acamparmos aí por dois dias, partiríamos a cavalo até a Caleta Maria, no Lago Fagnano. Nos hospedaríamos na estância fueguina de German Genskowski, a mesma que recebeu o grupo do fotógrafo Almarzo na etapa final da sua viagem. Em seguida, retornaríamos de 4×4 para Punta Arenas.

As máscaras eram usadas na cerimônia do Hain, o mais importante ritual dos selk’nan: o de iniciação e preparo dos jovens ABORÍGINES para a vida adulta

A Terra do Fogo gera imagens policromadas que permeiam desde a tundra, passando pelo bosque magalhânico, até as casas da pitoresca cidade de Porvenir.

O que alimenta um coração faminto de viagem? O meu, certamente, anseia por novas conquistas no universo da imaginação e da cultura. Mas ele em nada se alegrou quando, depois de oito horas, já em Porvenir, fico sabendo que não navegaremos até o Glaciar Marinelli devido aos fortes ventos. Assim, iremos direto de carro até a estância de German, no lago Fagnano. Diante da perda de um dos destinos-chave da viagem, sugiro conhecer outros atrativos da ilha, mas meus palpites não são aceitos com alegações de “muito longe”, “terreno acidentado”, “vamos chegar tarde”, “vai chover”. Desisto das sugestões, mas não entrego os pontos.

Do episódio, tiro a primeira lição da jornada: quando se viaja, o imprevisto é companheiro constante, e é preciso aprender não só a respeitá-lo, mas também a extrair dele o melhor proveito. Sob a aparência de simples aventura despretensiosa, essa viagem também fez aflorar em mim muitas questões sobre a convivência, a paciência, a necessidade de se aceitar a realidade. No grupo de jornalistas, por sorte, reinava a cordialidade. Sem dúvida, ao evocar isolamento e solidão, a natureza daquelas terras contribuía para isso.

No dia seguinte, a saída aconteceu com seis horas de atraso. Mas foi compensador, pois me permitiu conhecer melhor a bem planificada Por venir, com suas ruas largas e arborizadas. Suas casas de madeira colorida são patrimônio arquitetônico do Chile. No Museu Provincial Fernando Cordero Rusque, tive contato pela primeira vez com a cultura aborígine dos selk’nan.

O DIRETOR DO MUSEU, Juan Eduardo Santana, falou com entusiasmo sobre o acervo do museu, detendo-se mais em comentários sobre a coleção de máscaras indígenas. Santana informou que elas eram confeccionadas em couro de guanaco e cortiça de certas árvores, e que eram usadas na cerimônia do Hain, “o mais importante ritual dos selk’nan: o de iniciação e preparo dos jovens para a vida adulta”.

O requisito fundamental para se participar desse cerimonial era possuir um elevado grau de espiritualidade. Os corpos pintados e as máscaras nas quais predominam as cores branca, vermelha e preta serviam para manter em segredo a identidade do iniciado durante a cerimônia. “Dessa forma, cada um dos participantes representava um determinado espírito”, explicou Santana.

Embora em 1520, na sua viagem de circunavegação, o navegante português Fernão de Magalhães tenha levado o mundo “civilizado” à Terra do Fogo, a região só começou a se desenvolver a partir do final do século 19, e de modo curioso. Em 1873, o francês Eugenio Pertuisset se convenceu de que aquelas terras escondiam o famoso tesouro oculto dos incas. Ele escarafunchou por toda parte, mas não encontrou nada. Em compensação, seis anos depois de iniciar suas buscas, Pertuisset encontrou muitos indícios da presença de veios de ouro na região.

No sentido horário: máscaras iniciáticas dos selk’nan fazem parte do acervo do Museu Provincial, em Porvenir; os pastores de ovelhas Neftali e Juan, dois verdadeiros heróis da resistência nessa natureza extrema; a estonteante magnitude do lago Fagnano; e o estancieiro German Genskowski.

Como de bobo ele não tinha nada, pediu e ganhou concessão para explorar o minério. Ficou rico. Mas também ficou a dúvida: qual seria realmente o tesouro que Pertuisset procurava? Imediatamente, a febre do ouro contagiou outras pessoas. Aos bandos, elas migraram para lá, promovendo o primeiro ciclo de desenvolvimento da ilha.

Quando a extração do ouro começou a minguar, a partir de 1910, uma nova onda de riqueza surgiu com a criação de ovelhas e a produção de lã. Hoje, a a ilha chilena vive o seu terceiro ciclo de prosperidade: o do petróleo.

AO DEIXARMOS Porvenir, em direção à estância de German, passamos por povoados de mineiros hoje abandonados e encontramos dragas enferrujadas para a prospecção do ouro. Entre elas, as da localidade de Russ Fin, cujos destroços são hoje monumento nacional. Elas assinalam o apogeu de um tempo em que a extração do minério era mecanizada, ao redor de 1906. No caminho, avistamos ao longe, naqueles campos abertos e destituídos de árvores, verdadeiras mansões em estilo anglo-escocês das sedes das estâncias fueguinas, muitas delas em ruínas.

A colonización ovejera da Terra do Fogo começou na mesma época da febre do ouro. Em 1877, chegaram à ilha as primeiras ovelhas provenientes das Ilhas Falklands-Malvinas. Os animais destinavam-se à tosquia e também ao abastecimento de carne para os mineiros. Perfeitamente aclimatada àquelas terras e ao clima rigoroso ali reinante, a pecuária de ovelhas proporcionou um salto de progresso à Terra do Fogo. Nessa época, da mesma forma que os argentinos faziam no seu lado do território, o governo chileno começou a investir na região, com o objetivo de consolidar a sua colonização.

Foi em nossa viagem rumo ao sul da ilha, num entardecer em que as cores quentes do céu se misturavam aos ocres da terra, que percebemos um vendaval se aproximando. Na Terra do Fogo, vendavais e nevascas surgem de um momento para outro, parecendo vir do nada. Tais tempestades são conhecidas pelo nome de williwaw.

Quase à meia-noite, na escuridão total, ainda em meio ao frio e à chuva, chegamos à casa de German Genskowski. Aos 55 anos, ele parece um personagem de Guimarães Rosa. Rosto marcado não pelo sol, mas pelo frio. Sempre de chapéu de couro, camisa xadrez sob um casaco de gola de pele de carneiro, não consegue esconder o grande amor que sente por aquela terra. Vive com a mulher numa casa pequena. Mesmo assim, aceitou hospedar nosso grupo de jornalistas com grande alegria. A eletricidade é eólica. A gastronomia, à base de carneiro e truta.

COMO SEU PAI, que emigrou para a região na década de 1930, German também se enamorou pela Terra do Fogo e nela fincou raízes. “Quando construí minha casa, há 20 anos, trouxe todo o material no lombo de mulas e bois, numa viagem que durou dois dias. Até há pouco, vinha a cavalo, com a mulher e com minhas duas filhas”, recorda. Hoje, a estrada em construção que vai ligar Porvenir a Puerto Williams – o povoado mais austral do planeta – já chegou bem perto de sua casa.

Ao amanhecer, é impossível ficar alheio ao impacto provocado pela paisagem que circunda a casa de German: um verdadeiro mosaico de cores tinge a tundra que se estende a perder de vista. Tonalidades do vermelho, laranja e amarelo, misturadas aos verdes. A tundra, uma espécie de vegetação rasteira de musgos e líquens, típica das regiões muito frias, recobre as rochas e os campos alagados.

Ao redor do lago Fagnano, nas imediações, árvores retorcidas pelos fortes ventos, carregadas de plantas epífitas, como a cabelo-de-bruxa, parecem seres sobrenaturais. Nos seus troncos, as cores indicam a direção dos ventos: a cor esverdeada revela a direção dos ventos gelados; a cor mais amarelada, a direção dos ventos mais secos.

Uma incursão pelos bosques da região conduz a mundos desconhecidos. Mas é preciso ter muito cuidado ao caminhar, pois o terreno esconde armadilhas. A principal é a turfa. Composta de matéria orgânica, às vezes torna-se muito fofa e pode até engolir um cavalo desavisado. E era na turfa que pisávamos na noite anterior, na escuridão, quando chegamos à estância.

Acima, a placa indicativa da incidência de raios ultravioleta é monitorada diariamente. À baixo, o centro histórico de Punta Arenas conserva belas construções do início do século passado.

No meio do bosque, as descobertas se sucedem: uma flor, um aroma desconhecido no ar, uma árvore com aparência de bicho, um cavalo selvagem passando solitário por ali. Quase acreditamos ter visto um duende.

Duendes, por sinal, não faltam na imaginação dos estancieiros da Terra do Fogo. Eram desses pequenos e travessos seres mágicos que eles se lembravam quando, na escuridão da noite, ouviam sons de galhos sendo serrados e transportados através dos cursos d’água para a construção de pequenas represas. Mas não eram duendes. O barulho era provocado por castores.

Há cerca de meio século, esses animais originários do Canadá e do Alasca, no Hemisfério Norte, foram introduzidos na Terra do Fogo pelos argentinos. A intenção era deixar que se reproduzissem para depois caçá-los e comercializar suas peles. Mas o que aconteceu foi um desastre. Sem inimigos naturais, os castores se reproduziram como coelhos, tornando-se uma verdadeira praga. Roem as cascas das árvores, matando-as. Com suas represas, entopem os riachos da região. A tal ponto que hoje sua caça é autorizada pelo Chile e pela Argentina.

Havia no karukinka um local sagrado e puro, onde os deuses meditavam em paz. Para que eles continuem ali é que os fueguinos hoje se empenham em manter essa natureza sublime.

SERVIÇO

Quem leva: Landscape Best Trips – tel. (11) 3034-4940, site: www.landscape.com.br, e-mail: info@landscape.com.br.

Mais informações: www.patagonia-chile.com.