Mesmo sendo preto, Alison, jovem paulista aprovado em medicina pela USP, foi barrado por comissão de avaliação. Caso ilustra subjetividade e fragilidade deste modelo.Alison, jovem paulista, recebeu com felicidade a notícia: foi aprovado em medicina na Universidade de São Paulo (USP). Posso apenas imaginar a alegria que ele e sua família sentiram. Ele, pobre, preto e oriundo da rede pública, estava diante de uma conquista que é o sonho de milhares de jovens de todo o país. Inclusive, muitos passam anos tentando e desistem.

Graças ao provão paulista, Alison foi aprovado direto do ensino médio público no curso mais elitista e concorrido do país. A alegria, entretanto, não durou muito.

Ele foi aprovado nas vagas reservadas para cotas raciais e precisava ainda passar pela banca de heteroidentificação. Para quem não sabe, essa é a comissão que “avalia” se o candidato é realmente preto. O objetivo é impedir que alguém burle o sistema e se declare preto quando não é, e, consequentemente, garantir com que o direito seja apenas usufruído por quem legalmente o merece.

Logo após a avaliação, a grande alegria do Alison e de sua família foi tomada por muita tristeza e frustração: ele foi barrado pela banca, ou seja, a comissão avaliou que ele não seria preto e, portanto, não poderia se matricular e ser oficialmente um estudante da USP.

O caso tomou grandes proporções e a Justiça foi envolvida. À Justiça, a universidade alegou que o jovem leu sua autodeclaração para a banca, “que concluiu que o candidato tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos raspados impedindo a identificação, não apresentando o conjunto de características fenotípicas de pessoa negra”.

Antes de prosseguir com o texto, quero fazer um importante apontamento sobre a USP. Sou egresso da instituição, oriundo de um bairro da periferia e acredito que tenho lugar de fala. A instituição tem sim uma história de elitismo na composição de seu corpo discente, que, por muito tempo, foi composto majoritariamente por jovens oriundos da rede privada. Mas precisamos ser justos: ela vem colocando energia em aumentar seus mecanismos de inclusão.

Além disso, digo com muita segurança e conhecimento de causa: há professores, pesquisadores e funcionários da universidade altamente capacitados e comprometidos com a democratização do acesso ao ensino superior e com a pluralidade do corpo discente da instituição.

No entanto, é fato: houve sim uma falha com o Alison. A banca de heteroidentificação da USP, normalmente, é presencial. Mas no caso dele, como a aprovação foi via provão paulista, a apresentação foi online e isso é inadmissível. Uma avaliação de tamanha importância e que visa avaliar aspectos fenotípicos do candidato não pode ocorrer em outro formato além do presencial. Questões como iluminação, qualidade da conexão, luz natural, posição da câmera e afins são variáveis que podem enviesar a percepção sobre das características de alguém.

Padronização e diretrizes nacionais

A política de comprovação da autodeclaração, por meio da banca, é válida e necessária. Infelizmente, não podemos apenas confiar na autodeclaração do candidato, sobretudo quando a vaga no ensino superior, e o consequente diploma, está em jogo.

Mas essas bancas precisam ser muito bem estruturadas e vou além: é necessário haver algum tipo de regulamentação, padrão nacional e diretrizes mais claras. No contexto atual, cada instituição pode estruturar sua própria banca e isso, em minha visão, não é positivo.

Não é um problema apenas da USP e ocorre em todo o país. Faço parte de vários grupos de vestibulandos nas redes sociais e vira e mexe aparece alguém relatando a preocupação antes de se apresentar para a banca e enviando fotos perguntando como o público o avalia em relação à cor.

É uma ansiedade que nasce justamente da falta de clareza nas bancas. Há margem para subjetividade e foi o que ocorreu com o Alison. Se você, leitor, estiver curioso, faça o seguinte teste: procure o caso no Google e verá fotos do jovem. Ele claramente é preto. Não há dúvidas.

Penso que, qualquer política que esteja “punindo” o grupo errado ou não filtrando quem deveria filtrar, precisa urgentemente de uma revisão e de uma reestruturação. Entendo que falhas podem ocorrer, mas casos como o do Alison simplesmente não podem voltar a se repetir com mais ninguém. Não pode.

As políticas de inclusão e de cota racial foram criadas como instrumentos de reparação, para garantir o acesso à universidade para jovens como Alison. Nesse contexto, a banca não deveria em nenhuma hipótese ser um momento de medo, ansiedade ou frustração para aqueles que ela deveria proteger.

Todos os instrumentos e mecanismos que foram criados para ajudar jovens como ele e para garantir seus direitos se voltaram contra ele e tornaram um dos momentos mais felizes de sua vida, rapidamente, também em um dos mais decepcionantes e tristes. Sinto muito por ele, mas não é possível voltar no tempo. Espero, sinceramente, que seu caso seja um gatilho para que todas as bancas de heteroidentificação do país sejam reestruturadas e também para sejam desenvolvidas diretrizes nacionais para essa avaliação.

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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1

Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.