28/02/2025 - 10:54
Maioria dos brasileiros não sabe o que é consumo moderado de álcool. Médicos alertam que não há um limite seguro para ingestão de bebida alcoólica.À primeira vista, o Alegria Sem Ressaca é um bloco carnavalesco como outro qualquer: tem fantasia, alegoria e adereço. Tem até uma bateria com reco-reco, pandeiro e tamborim. Um olhar mais cuidadoso, porém, desvenda o mistério: ao contrário dos outros blocos, seus integrantes não consomem bebida alcoólica. Em vez de cerveja, os foliões bebem água – mineral ou de coco. No lugar do chope, sucos e picolés de fruta.
“A verdadeira alegria do Carnaval não está dentro de um copo; está dentro de cada um de nós”, filosofa o psiquiatra Jorge Jaber, o idealizador do bloco Alegria Sem Ressaca. “Minha inspiração veio de uma tragédia pessoal: quando eu tinha 14 anos, perdi um amigo da mesma idade por overdose. Desde 2003, tento conscientizar a população de que o consumo abusivo de álcool pode trazer consequências graves à saúde.”
Tudo no Carnaval remete a álcool. Desde os nomes de alguns blocos, como Birita Mas Não Cai e Quem Num Guenta Bebe Água, até as letras de algumas marchinhas, como “As águas vão rolar / Garrafa cheia eu não quero ver sobrar / Eu passo mão na saca, saca, saca-rolha / E bebo até me afogar” ou “Você pensa que cachaça é água? / Cachaça não é água não / Cachaça vem do alambique / E água vem do ribeirão”.
Não à toa, o consumo de bebida alcoólica, a exemplo da temperatura no verão, tende a subir no Carnaval. Em 2024, as vendas de latinhas e garrafas de cerveja cresceram 12% em comparação ao mesmo período do ano anterior. E nem adianta pedir: “Beba com moderação”. Esse tipo de alerta, criado em 2008 pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação (Conar), não funciona.
É o que garante um estudo britânico de 2022. Conduzido por pesquisadores da Universidade de Oxford e publicado na revista especializada British Journal of Health Psychology, ele dá o veredicto: os rótulos de advertência não estimulam o consumidor a beber menos.
Alcoolismo feminino
Um em cada cinco brasileiros, segundo o Ministério da Saúde, faz uso abusivo de bebida alcoólica. Ou seja, consome quatro ou mais doses, no caso das mulheres, e cinco ou mais doses, no caso dos homens, em uma mesma ocasião: festa, churrasco ou balada. Cada dose, corresponde a uma lata de 350 ml de cerveja, uma taça de 150 ml de vinho ou um copo de 45 ml de destilado, como vodca, gim, tônica, uísque ou cachaça.
Homens bebem mais do que as mulheres: são 27,3% contra 15,2%. No entanto, elas são mais vulneráveis ao álcool. Em geral, começam a beber mais tarde, mas levam menos tempo para se tornarem dependentes.
“Mesmo ingerindo doses menores, elas tendem a adoecer mais”, adverte a psiquiatra Ana Cecília Marques, doutora em Neurociências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (ABEAD).
Abusivos x moderados
Há dois tipos de consumidores de álcool: os abusivos e os moderados. O que difere um do outro é o risco à saúde. No caso dos abusivos, o risco é alto. No caso dos moderados, é baixo.
“Não há limite seguro para o consumo de álcool. O mais seguro é não consumir”, recomenda o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, doutor em Psiquiatria pela Unifesp e ex-presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Álcool e Drogas (ABRAMD). “O risco pode ser baixo, mas não é nulo.”
Mas, afinal, o que é “moderação” quando o assunto é álcool? No Brasil, consumo moderado é definido como uma dose por dia para as mulheres e duas doses por dia para os homens. No Canadá, o rigor é maior: são duas doses por semana tanto para homens quanto para mulheres. Outros países, como França, EUA e Austrália, também estudam reduzir o número de doses máximas toleradas.
“Mesmo pequenas quantidades, a longo prazo, podem trazer riscos à saúde”, alerta o psiquiatra Jorge Jaber, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “O ideal é evitar o consumo, principalmente em casos de histórico familiar de alcoolismo ou de doenças preexistentes, como hipertensão e diabetes.”
Tolerância zero
A pesquisa Álcool e a Saúde dos Brasileiros, de 2023, revela que a maioria da população não faz ideia do que seja “beber com moderação”. Segundo o levantamento, 75% dos consumidores abusivos acreditam que bebem moderadamente. Apenas 13% admitem que precisam de ajuda.
“Não se deve ingerir álcool em hipótese nenhuma: durante a gravidez, antes de dirigir e menor de idade”, afirma o psiquiatra Arthur Guerra, presidente do Centro de Informações sobre Álcool e Saúde (CISA).
Além de moderados e abusivos, há um terceiro grupo: os dependentes. O consumidor abusivo torna-se dependente quando, entre outros fatores, perde o controle sobre o ato de beber. Isto é, passa a beber em ocasiões em que não deveria. E pior: com frequência e quantidade cada vez maiores. Outros sinais de alerta: tolerância (precisa ingerir mais doses para obter o mesmo efeito), abstinência (passa mal quando para de ingerir álcool) e persistência (sabe que a bebida faz mal, mas não consegue evitar).
Janeiro Seco
Há muitas estratégias para reduzir o consumo ou parar de beber. O Janeiro Seco (“Dry January”) é uma delas. O objetivo é passar um mês inteiro sem consumir uma única gota. Que pode ser janeiro ou qualquer outro.
Há outras, acrescenta o historiador João Ricardo Rodrigues Viégas, consultor da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) para Tabaco, Álcool e Vigilância das Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNT): aumentar os impostos, restringir a publicidade e conscientizar o público. “Colocar rótulos de advertência em garrafas e latinhas é, sem dúvida, um passo importante”, afirma Viégas. “É direito do consumidor saber, por exemplo, que o álcool causa câncer.”
E, neste caso, não precisa ser consumidor abusivo. “Uma taça de vinho por dia já aumenta em 11% o risco de câncer de mama”, adverte o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, diretor da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (UNIAD). “Consumo de baixo risco, que não tem impacto na saúde, é uma dose por semana.”
“Sober Shaming”
A boa notícia é que as novas gerações estão bebendo menos. Segundo a pesquisa Copo Meio Cheio, o número de consumidores nas gerações Y (nascidos entre 1981 e 1996) e Z (entre 1997 e 2010) caiu. Em compensação, na geração X (entre 1965 e 1980), aumentou.
De acordo com a pesquisa, 62% dos consumidores já pensaram em reduzir o consumo. Desses, 79% conseguiram. Dos que conseguiram, 67% desejam parar no futuro. Ter um estilo de vida mais saudável é o principal motivo.
Um dado que chamou a atenção de Gabriela Terra, CEO da Go Magenta, empresa responsável pela pesquisa, foi o “sober shaming” (“humilhação dos sóbrios”, em tradução livre). “Quando perguntamos quais são as principais barreiras para diminuir o consumo, a segunda mais apontada, por 34% dos entrevistados, foi a necessidade de dar satisfação. Ou seja, somos os maiores algozes de quem está tentando parar”, analisa.
Sóbria há 16 anos, a publicitária Graziella Santoro já sofreu incontáveis episódios de “sober shaming”. Tantos que, com o tempo, aprendeu a inventar desculpas: num dia, estava pagando promessa; no outro, estava tomando remédio; no terceiro dia, tinha exame para fazer, e assim por diante. Hoje, quando alguém lhe pergunta: “Por que você não bebe? “, a fundadora e presidente da Associação Alcoolismo Feminino, instituição que reúne quase 700 mulheres, limita-se a rebater: “Não quero, e você? Por que bebe?”
Manual de sobrevivência
Para o Carnaval não terminar antes da quarta-feira de cinzas, os médicos dão algumas dicas. A primeira delas é manter-se hidratado. “A água ajuda a diluir o metabolismo do álcool e inibe a vontade de tomar cerveja para hidratar o corpo ou refrescar do calor”, explica Arthur Guerra.
A segunda dica é semelhante à primeira: não beber com o estômago vazio. O motivo também é parecido: “Reduz a velocidade de absorção do álcool no organismo”, observa o psiquiatra Jorge Jaber.
A terceira é evitar misturas perigosas. Em outras palavras: remédios, principalmente os benzodiazepínicos, como sedativos, ansiolíticos e relaxantes musculares, entre outros, ou energéticos. “É como se você pisasse no freio e no acelerador ao mesmo tempo”, compara Guerra. “Enquanto o efeito do álcool é depressor, o do energético é euforizante.” O carro pode colidir contra o primeiro poste que encontrar pelo caminho.
Por falar nisso, bebida não é medicamento. “Tá ansioso, estressado ou deprimido? Não é a cerveja que vai resolver seu problema”, acrescenta o psiquiatra. “Procure um médico.”
A quarta dica é estabelecer limites. E, principalmente, respeitá-los. “Defina previamente o quanto pretende beber”, aconselha Jaber. “Não ceda à pressão dos outros para tomar mais uma dose”, arremata Guerra.
Por último, não misture volante e bebida. “Não dirija depois de consumir álcool”, avisa Jaber. “Planeje com antecedência como voltar para casa: táxi, aplicativo ou transporte público.”
Lembre-se: quem bebe menos, se diverte mais.