Bem cedo, quase ao raiar do dia, Mehdi Abuhasan deu uma última olhada no quarto de pensão que ocupara durante os dois últimos meses, na parte mais pobre do Bronx, em Nova York. Depois, trancou a porta e saiu à rua carregando uma maleta com seus pertences. O trajeto até o aeroporto era longo, e ele o faria a pé. Os dólares que ainda tinha no bolso dariam apenas para uma pequena refeição, e ele teve de escolher entre o bilhete de metrô ou um hambúrguer com Coca-Cola. No outro bolso, Mehdi guardava seu tesouro: um bilhete aéreo, só de ida, para San Francisco, na Califórnia, do outro lado dos Estados Unidos. Lá estava sua meta: um pequeno restaurante libanês cujo dono, um velho conhecido, atendera seu pedido e lhe dera um trabalho.

Mehdi estava desempregado havia meses. Vivia em Nova York desde antes de começarem os conflitos na sua Síria natal. Veio chamado pelo irmão, que tentava manter um restaurante de comidas sírias. O negócio não deu certo, o irmão foi para o Egito e Mehdi decidiu ficar na cidade para tentar a sorte. Mas a sorte não lhe sorriu. Não conseguiu outro emprego, viveu fazendo bicos aqui e ali, e agora, sem moradia, sem dinheiro, sua única esperança estava em San Francisco.

Videocâmeras (foto) e sistemas de identificação facial (foto abaixo) são ferramentas características da nova era de vigilância total

No aeroporto, faminto, cansado e nervoso, entrou na fila para o check-in. Quando chegou sua vez, mostrou ao policial dos controles os documentos e o bilhete aéreo. O guarda observou-o com frieza absoluta. Mehdi sentiu o olhar e, incontrolável, um fio de suor escorreu na sua testa. O guarda apontou uma pequena câmera em direção a seu rosto e, segundos depois, na tela do computador apareceu um código que o policial sabia interpretar com perfeição: “Provável ter­rorista”.

“A moment, please…” – em um instante, dois homens uniformizados surgiram atrás de Mehdi e lhe pediram para segui-los até uma sala sem janelas, contendo apenas uma mesa e duas cadeiras. O tempo passou. Até que finalmente chegou alguém. E Mehdi implorou: o avião partiria em breve, ele não podia perder o voo, por favor… Como, o avião já partiu?
Não. Mehdi não subiria naquele avião. Não poderia subir em nenhum outro avião. O computador “leu” seu rosto e o colocou na No FlyList.

A partir de então, ele passou à condição de suspeito de ser um terrorista. Mas Mehdi não é um terrorista. É apenas mais um imigrante desafortunado que tenta sobreviver numa terra muito estranha. Agora, mais uma vítima do julgamento negativo de uma das máquinas infernais inventadas pela nova sociedade do pré-crime. A lista dessas vítimas aumenta a cada dia.

Risco e incerteza

O que significa essa historinha? Significa que, passo a passo, mas de modo decidido e inevitável, a sociedade moderna está abandonando o tradicional modelo criminológico pós-crime, onde existem crimes, criminosos e vítimas, investigações, prisões, processos, condenações e habeas corpus, para abraçar um modelo pré-crime. A nova sociedade pré-crime, por seu lado, é caracterizada pelo risco e pela incerteza, pela vigilância, pelo acaso moral, pela prevenção, tudo em nome da segurança.

Para que funcione, ocorre, obviamente, uma grande expansão do número de pessoas e de ferramentas dedicadas aos controles. Não mais poucos e selecionados homens fardados (as autoridades policiais), e sim o alargamento dessa responsabilidade a setores privados – embora a distinção entre os dois setores seja cada vez mais tênue –, a poder de procurações, terceirizações, contratos e estratégias de responsabilização, tudo com óbvios buracos em termos de competência e responsabilidade.

Os temores da era moderna são tantos e tão grandes que eliminam as diferenças das várias formas de controle, de modo que os banais alarmes antifurto e as sofisticadas instalações via satélite terminam por ser uma única e mesma coisa. A única diferença entre ambas é o preço (os mais ricos podem se permitir controles melhores), pelo simples fato de que as duas coisas são, em última análise, medidas de segurança. Da mesma forma que hoje aceitamos as instalações via satélite, dentro em breve aceitaremos sem críticas ou reclamações as novas tecnologias de controle, e quanto mais os preços baixarem, mais serão extensíveis à popu­lação inteira.

A vigilância digital é o último e global passo relativo às várias formas de vigilância física. Hoje, a cada dia, aumenta o número de nações que introduzem continuamente novas medidas de segurança (baseadas na ausência de um crime) em consequência da ênfase imposta pela mídia e relativa ao medo dos crimes e dos criminosos. As primeiras formas de prevenção criminal tiveram como alvo grupos específicos (hooligans, criminosos sexuais, suspeitos de terrorismo), seguidas de novas formas de controle de comportamentos anômalos e antissociais.

Vida devassada

Os analistas dessa nova sociedade dizem que a queda dos preços de gravação de dados pelos sistemas digitais foi a principal causa a estimular os governos a optar pela vigilância digital de massa. Hoje, as autoridades americanas, por exemplo, podem gravar as conversas de todos os telefones existentes no país usando apenas 300 petabytes (300 milhões de gigabytes) de memória, ao custo de US$ 30 milhões anuais. A gravação da vida inteira de cada cidadão requer 700 gigabytes anuais. O custo para todos os residentes nos EUA (2 hexabytes, ou 2 bilhões de gigabytes) é de apenas US$ 200 milhões ao ano.

O acesso a uma rede social significa o envio de uma infinidade de dados pessoais para essa empresa

Segundo informam os especialistas, o data center da Agência de Segurança Nacional (NSA, na abreviatura em inglês), em Bluffdale, no estado de Utah, é capaz de conter 12 hexabites de dados. O Google consegue gravar, em seus servidores, 15 hexabites de dados. A gravação e o registro da vida cotidiana de uma pessoa em todos os seus detalhes, ou lifelogging, é uma ação cada vez mais atual, completa e abrangente. O processador Word que utilizo neste momento para escrever estes comentários grava tudo, inclusive as correções e mudanças que fazemos no texto.

Cada acesso à internet implica a criação de logs,­ registros referentes a tudo aquilo que fazemos, sites que visitamos, fotos que olhamos, coisas que escrevemos, inclusive o tempo que permanecemos em uma página, pois assim é possível verificar se efetivamente aquela página foi lida ou não. Nossos smartphones estão constantemente conectados às antenas dos provedores de acesso, que devem saber exatamente onde você se encontra para estabelecer um vínculo de comunicação. Se, além disso, a internet estiver ativada, tudo aquilo que está no smartphone é enviado online – as chamadas, as mensagens e também a própria conexão com a internet.

A troca de informações é multiplicada por dez. Tudo aquilo que está gravado no smartphone é enviado online – as chamadas, as mensagens, as compras, as visitas. Inclusive as máquinas mais modernas, de funcionamento digital, possuem computadores em seu interior. E elas também produzem dados. Os animais de estimação? Se tiverem um chip de identificação inserido sob a pele, pode estar certo: não são mais que computadores que abanam os rabos pelos corredores da casa.

Certo, a lei não permite (ainda?) o acesso pleno ao conteúdo das conversações, razão pela qual sem a autorização de um magistrado, ninguém poderá nos escutar quando falarmos ao telefone (mas o conteúdo dos e-mails será lido e gravado pelo provedor), mas todo o resto será enviado a alguém online, que o conservará e o utilizará. A centralização crescente da internet fez com que esse “alguém” seja na verdade algumas poucas empresas: Level 3 para os cabos em fibra ótica, Amazon para os servidores, Akamai para os CDN (Content Delivery Network, sistema de computadores interligados em rede através da internet que cooperam para fornecer conteúdo), Facebook para os anúncios, Google para as pesquisas.

Provocar arrepios

“Sabemos quem você é. Sabemos onde você esteve. Sabemos, com grande probabilidade de acerto, aquilo que você está pensando a respeito de alguma coisa”, declarou abertamente Erich Schmidt, CEO do Google. São os metadados – os contatos, os números de telefone, as informações que acontecem em um computador – que direcionam uma comunicação. “E não apenas os metadados”, argumentou como justificativa a NSA, querendo dizer que não espiona as conversações, porque elas revelam nossas relações com os outros: amigos, parentes, sócios de negócios, amantes, aliados, cúmplices.

O data center da NSA em Bluffdale, Utah: capacidade para armazenar 12 hexabytes de informações

Os metadados também revelam os encontros com o psiquiatra, o cirurgião plástico, a clínica para abortos, o centro de tratamento da Aids, o clube de strip-tease, o advogado, o motel, a mesquita, a sinagoga, a igreja católica, o bar gay. Os metadados revelam tudo aquilo que nos interessa realmente, e constituem verdadeiras janelas escancaradas a respeito de nossa vida. “Matamos pessoas baseados nos metadados”, disse Michael Hayden, ex-diretor da NSA e da Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês). Hoje, dispomos dos meios e das oportunidades para uma vigilância global. As onipresentes videocâmeras registram cada passagem, cada chapa de automóvel, cada figura humana.

O FBI possui um banco de dados referentes a mais de 50 milhões de pessoas, apenas nos EUA. A polícia de Dubai integra o reconhecimento facial com o Google Glass para identificar automaticamente os suspeitos. Em 2008, o programa Waze, posteriormente comprado pelo Google, introduziu um novo sistema de navegação. Traçando o movimento dos carros, ele pode estabelecer em tempo real os dados do tráfego e sugerir as ruas e estradas menos trafegadas. Alguém ainda duvida de que chegamos à era do pré-crime e que, daqui para a frente, qualquer indivíduo poderá ser acusado (e inclusive condenado) por qualquer coisa? Até mesmo por um crime que não cometeu?


Realidade e ficção

Quem assistiu ao filme Minority Report – A Nova Lei, de 2002, ou leu o conto homônimo do escritor Philip K. Dick em que a obra se baseou, já tem uma boa noção dos riscos envolvidos em uma sociedade na qual a simples possibilidade de se cometer um crime é tão importante quanto o crime em si. A trama, que se passa em 2054, está centrada no capitão John Anderton (vivido por Tom Cruise), chefe da Divisão Pré-Crime de Washington, que se baseia nas visões de três sensitivos (chamados precogs) para evitar que assassinatos sejam cometidos prendendo antes os potenciais assassinos.

Viciado em drogas desde que seu filho desapareceu, Anderton é ele mesmo indicado, numa previsão dos sensitivos, como o assassino de uma pessoa que nem conhece. Começa aí uma jornada sem pausas do capitão em busca de provas para confirmar sua inocência, tendo de driblar a perseguição dos investigadores encarregados de prendê-lo e as várias ferramentas de identificação que podem denunciá-lo a qualquer momento. Ele tem, por exemplo, de fazer um arriscado transplante de olho para evitar os sistemas de reconhecimento óptico espalhados pela cidade.