01/02/2009 - 0:00
Diversos historiadores já tentaram traçar a história da globalização, mas é praticamente impossível encontrar seu marco zero. Há quem enxergue a origem do fenômeno já nos primeiros intercâmbios comerciais entre as várias tribos africanas. Outros apontam as expedições venezianas, como as de Marco Polo nas rotas da seda, como um divisor de águas. E há ainda uma corrente que vê na expansão marítima das navegações ibéricas um fator determinante para a aproximação entre os povos. O fato é que o comércio internacional, medido em relação ao PIB dos países, foi mais representativo no período de hegemonia liberal que marcou o fim do século 19 e início do século 20 do que nos dias atuais. Portanto, alguns estudiosos sustentam até que o mundo já foi mais globalizado no passado do que é hoje – inclusive porque o fluxo de pessoas, com as grandes ondas migratórias do Velho para o Novo Mundo, era também muito mais intenso.
A tendência predominante, no entanto, é definir a globalização como um fenômeno surgido no fim dos anos 70 do século 20, quando os avanços tecnológicos se somaram a uma grande onda ideológica que se formou com a ascensão ao poder de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Isso permitiu a integração instantânea dos mercados financeiros mundiais, formando uma nuvem planetária de investidores. Com ela, nascia o que o investidor George Soros, um húngaro naturalizado norte-americano, definiu como a “superbolha”. De natureza comercial na origem, a globalização passou a ser também compreendida como um fenômeno essencialmente financeiro – o que lhe conferiu um caráter perigoso e desestabilizador.
De lá para cá, a marcha se acelerou tremendamente. Do ponto de vista produtivo, as multinacionais ocidentais acentuaram a chamada “divisão internacional do trabalho”. Transferiram centros de produção para países de mão-de-obra barata, especialmente da Ásia, que passaram a fornecer para seus próprios mercados. No campo financeiro, a “nuvem de investidores” passou a ter seu capital calculado como algo em torno de US$ 12 trilhões/dia – um dinheiro capaz de se movimentar em segundos, remunerando as boas práticas e punindo os maus governantes. Tinha início a chamada “ditadura dos mercados”, que tantas crises financeiras provocou nos últimos anos. Ainda assim, no campo de batalha ideológico, a globalização vinha vencendo a guerra, apesar dos protestos de milhares de jovens e militantes esquerdistas nos encontros do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio. Isso porque há vários estudos apontando que mais de 300 milhões de pessoas deixaram a linha de pobreza nos últimos anos, em função da expansão do comércio internacional.
De natureza comercial na origem, a globalização passou também a ser compreendida como um fenômeno financeiro – o que lhe conferiu um caráter perigoso e desestabilizador
O QUE PODERIA, então, deter a globalização? Apenas ela própria, que esbarraria nos limites da natureza. Foi assim que, recentemente, o professor Menzie Chinn, um pesquisador de origem asiática radicado nos Estados Unidos, cunhou a palavra “desglobalização”. Ela seria consequência não de uma derrota ideológica, mas da disparada recente dos custos de uma mercadoria escassa: o petróleo. Isso tornaria inviáveis os custos de transporte de contêineres por navios e obrigaria as multinacionais a realocar suas fábricas, trazendo-as novamente para perto dos centros consumidores.
Chinn fez seu estudo quando o petróleo estava cotado a US$ 150 e havia previsões de que o barril poderia rapidamente chegar a US$ 200 – e, quem sabe, a até US$ 500 no médio prazo. Com isso haveria o risco de implosão do atual modelo econômico global, fundado na premissa de que o mundo produz e os Estados Unidos consomem – em qualquer loja do Wal-Mart em solo norte-americano, mais de 70% dos itens são importados. No entanto, desde que Chinn publicou seu trabalho, o barril caiu para pouco mais de US$ 40. Seria mais uma vitória da globalização? Na verdade, nem tanto. A crise internacional hoje ameaça mais as empresas de navegação do que a alta do petróleo. Um estudo divulgado pela consultoria internacional Celent, no início de dezembro, prevê o desaparecimento de vários armadores nos próximos anos em função da queda na demanda.
A desglobalização, porém, já está em curso. E o fenômeno se deve mais à ação do homem do que às forças da natureza. Algumas semanas atrás, a revista de negócios norte-americana Business Week saiu com uma capa reveladora. A manchete dizia: Can Obama Keep Those New Jobs at Home? – “Pode Obama manter os empregos aqui?” A tese central da reportagem é a de que, bem mais simples do que criar 2,5 milhões de vagas, como promete o presidente norte-americano, Barack Obama, seria impedir a exportação de empregos para outros países. É um sinal evidente de que a opinião pública norte-americana já começa a pender para o protecionismo.
Numa pesquisa recente feita pelo Pew Global Institute, apenas 52% dos cidadãos estadunidenses disseram que o comércio internacional faz bem ao país – em 2002, 78% tinham essa opinião. Em função da crise, o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, passou a prever que o fluxo de mercadorias terá, em 2009, a primeira contração desde 1982. O mesmo ocorrerá com os fluxos de investimentos empresariais e de capitais financeiros, os outros dois fenômenos que foram o tripé da globalização.
Qual será a intensidade dessa retração? Ninguém é capaz de prever, mas vale a pena recorrer às lições da história. Na crise econômica dos anos 30, o governo norte-americano adotou duas medidas que mudaram a face do mundo. A primeira foi o Buy American Act, que deu preferência aos fornecedores norte-americanos em todas as compras governamentais. A segunda foi a Smoot- Hawley Tariff, que levantou barreiras ao comércio internacional. As importações norte-americanas, que haviam sido de US$ 4,4 bilhões em 1929, caíram para US$ 3,1 bilhões em 1930, afetando política e economicamente vários países, Em muitos casos, a falência da ordem liberal colocou em xeque a própria democracia.
QUEM ABRAÇA ESSA visão histórica é o próprio especulador George Soros. Ele acaba de publicar um trabalho chamado O Novo Paradigma para os Mercados Financeiros, escrito sob influência direta das obras do austríaco Karl Polanyi, autor do clássico A Grande Transformação. Resumidamente, Polanyi descreve a ascensão e a queda da ordem liberal do fim do século 19 e do início do século 20. O grande ponto de inflexão da história teria sido a crise financeira de 1929, à qual a de 2008 já é comparada, que deu impulso a movimentos nacionalistas e totalitários ao redor do mundo.
Não se trata aqui de prever uma repetição do passado. Em todos os encontros internacionais pós-crise, fala-se em cooperação e há sinais de ações coordenadas em busca de soluções
A origem do cataclismo, segundo o austríaco, foi a crença cega na teoria de que os mercados financeiros seriam capazes de se autorregular para o bem da humanidade – exatamente o diagnóstico que Soros faz da crise atual. O que mais preocupa, contudo, são as consequências políticas de um abalo econômico de grandes proporções. “Depois de 1930, a economia de mercado vivia uma crise sem precedentes; em poucos anos, o fascismo se tornaria um poder global”, escreveu Polanyi. Outro historiador, o britânico Niall Fer- ºguson, também relaciona a ascensão do nazismo à debacle de 1929. “Ninguém ganhou mais capital político com a falência da globalização do que Adolf Hitler”, diz ele. Ferguson relembra um discurso da campanha de Hitler na Alemanha de 1932. “Há tanto internacionalismo, tanta consciência mundial, tantos contratos internacionais, a Liga das Nações, a Segunda Internacional, a Terceira Internacional – mas o que isso tudo produziu para a Alemanha?”
Não se trata aqui de prever uma repetição do passado. Em todos os encontros internacionais pós-crise, fala-se em cooperação e há sinais de ações coordenadas em busca de soluções. Na reunião recente do G-20, em São Paulo, a ministra das Finanças da França, Christine Lagarde, resumiu sua mensagem de forma simples. “É preciso resistir às tentações protecionistas”, disse ela. Mas essa escolha nem sempre é trivial. No mês de novembro, o mercado de trabalho dos Estados Unidos eliminou 533 mil vagas – o pior resultado em 15 anos.
Estima-se que, em 2009, a indústria de automóveis do país terá um excesso de capacidade de quase 3 milhões de veículos, o que representa quase um Brasil inteiro. Numa situação desse tipo, adotar ou não medidas protecionistas pode ser a escolha entre um desemprego de 10% ou 20%. Portanto, é algo que deixa de ser escolha e se torna quase uma imposição, que poderá adiar, mais uma vez, a utopia de um mundo sem fronteiras, com mercados que se autorregulam. Bem-vindo à era da desglobalização.