Histórico da visibilidade LGBTQ na capital alemã data de mais de 100 anos – apesar da repressão nazista. Multiculturalidade e interseccionalidade criam um clima liberal. E a “grossura” dos berlinenses até contribui.Num país classificado entre os mais positivos para LGBTQs, Berlim é a cidade mais acolhedora. Sim, já perdi a conta de quantas vezes me perguntaram (em geral, heteros) se o título não caberia a Colônia. Mas a minha conclusão se baseia em pesquisa e experiência vivida.

Começemos com o básico: a capital é a cidade mais populosa da Alemanha; tem o maior número de indivíduos LGBTQ vivendo no mesmo lugar, com mais recursos e infraestrutura para que se conectem, inclusive a rede de transportes públicos local.

Quem acaba de chegar e quer fazer uma exploração mais rápida, basta ir direto à Nollendorfplatz, no bairro de Schöneberg, onde há numerosos bares, clubes e cafés queer. Aqui eu sempre vou à Eisenherz, uma das minhas livrarias preferidas para comprar romances com personagens LGBTQ em inglês, francês ou alemão.

Mas para qualquer um/a que esteja procurando uma festa quente, ou mesmo um evento onde queers são bem-vindas/os, eu sugeriria o website da revista local Siegessäule: ela apresenta uma panorâmica do que há para fazer de dia a dia, além de listas de recursos de saúde mental e sexual para LGBTQs.

O jeito “grosso” de ser berlinense

Tendo morado em Bonn por sete anos, visitei muitas vezes a metrópole próxima, Colônia, em especial a rua Schaafenstrasse, conhecida por seus bares e cafés gays. O povo lá era mais amistoso e mais aberto do que em muitas outras cidades alemãs.

Diz-se que Munique é trancada, Hamburgo é esnobe, e os berlinenses são conhecidos por seu jeito direto, que há quem ache grosso. Embora as experiências possam variar, dependendo de aonde se vai e o que se faz, eu percebo alguma verdade nessas generalizações.

Por exemplo: serem diretos ajuda os berlinenses a articularem o que querem, independente de identidades. Não há por que ter escrúpulos de vivenciar a capital alemã como um lugar positivo para o sexo, onde se é mais livre e aberta/o sobre a própria identidade de gênero do que em outras partes do país.

No entanto, a cena queer da capital é multicultural, e não composta apenas por berlinenses natos. Além de LGTBQs que vivem nela, Berlim recebe turistas de todo o mundo. Sua Parada do Orgulho Gay (Christopher Street Day, CSD) em julho é a maior do país, atraindo mais de 100 mil participantes a cada ano.

Maior taxa de ocorrências contra queers e trans

Mas a capital alemã tem também um lado bem sombrio, sendo o local onde mais ocorrem incidentes transfóbicos e anti-queer. Segundo o Ministério do Interior, dos 1.005 casos registrados no país em 2021, 456 ocorreram aqui.

Talvez esses números se devam a uma população queer mais numerosa e à maior disposição de denunciar as ocorrências. E, embora estime que 90% desse tipo de ataque não seja registrado, a Federação de Lésbicas e Gays na Alemanha (LSVD) reconhece que as autoridades da capital são mais eficientes em tomar ciência dos casos.

Berlim é a única cidade alemã onde gente queer do meu círculo social foi fisicamente atacada devido a sua identidade. Então tenho sempre a segurança em mente quando saio. É melhor evitar locais que não se conheça bem, sobretudo se está escuro. E talvez seja uma boa ideia pegar um táxi, ao se deslocar entre um local e outro de madrugada.

Porém, apesar de todas essas considerações, eu ainda me sinto mais à vontade em Berlim do que jamais estive em Colônia, Frankfurt, Hamburgo ou Munique. É porque há tantas comunidades diversas e interseccionais: africana, negra, queer, e assim por diante.

Tradição de vida gay e hedonismo

A existência de um histórico documentado da presença queer em Berlim talvez faça uma diferença: há mais de 100 anos LGBTQs tem sido visíveis aqui. O primeiro instituto de pesquisa de sexologia foi fundado em 1919 pelo médico e sexólogo gay Magnus Hirschfeld, e o local foi o bairro berlinense de Tiergarten. Á beira do parque homônimo, se encontra hoje um memorial para as vítimas homossexuais do Holocausto.

No documentário Cabaré Eldorado – O alvo dos nazistas, lançado pela Netflix em 29 de junho, o cineasta Benjamin Cantu explora a história por trás do clube noturno berlinense tão popular durante a República de Weimar.

“Costuma-se dizer que a tradição mais contínua de Berlim é seu estilo de vida queer e hedonista, ou a liberalidade, porque nos conecta tanto à vida 100 anos atrás, na década de 1920”, me disse Cantu.

Historiadores como Robert Beachy também têm enfatizado esse aspecto: “[Berlim] desempenhou um papel enorme na criação de uma subcultura e uma comunidade visível de indivíduos que se identificam de um modo particular”, afirma em seu livro Gay Berlin: Birthplace of a modern identity (Berlim gay: Berço de uma identidade moderna).

Os nacional-socialistas fecharam o Eldorado em 1932, um ano antes de assumir o poder, junto com outros locais frequentados por gays, lésbicas e outros indivíduos não conformes em termos de gênero. Devido a essa ruptura durante o regime nazista, não há um elo entre a vida queer de então e a de hoje.

Quase um século mais tarde, contudo, é possível andar pelas ruas de Berlim sabendo que indivíduos queer já foram visíveis aqui. Toda vez que frequento a minha livraria preferida, a Eisenherz, na Motzstrasse, eu passo pelo prédio que abrigava o Eldorado. Toda a área ainda é um ímã para LGBTQs de todas as partes do mundo.

Chiponda Chimbelu é jornalista econômico da DW com foco em África, diversidade e inclusão.