Coalizão governamental e oposicionistas da CDU entendem que Ucrânia pode usar armamento enviado pela Alemanha como quiser e não enxergam problemas legais. No entanto, impacto político é outra história.Para o Ministério da Defesa da Alemanha, segundo o porta-voz Wolfgang Büchner, a questão é simples: “São armas ucranianas”. Isso significa que, de acordo com essa interpretação, o governo alemão não tem mais nada a ver com os armamentos depois que eles são entregues à Ucrânia, que, a partir de então, fica responsável pela sua utilização.

A ofensiva em Kursk, uma região russa próxima da fronteira nordeste da Ucrânia, também foi uma “operação preparada de maneira muito confidencial”, e, aparentemente, sem coordenação com outros parceiros, segundo Büchner.

O porta-voz enfatizou que, para o governo alemão, é importante apenas que Kiev cumpra a lei internacional, o que a Ucrânia garantiu que vai fazer.

“Não há requisitos adicionais para o uso de armas”, a Ucrânia está “livre para escolher suas opções”, declarou Büchner.

O governo de Olaf Scholz ainda não confirmou se armas alemãs estão realmente sendo usadas na ofensiva ucraniana na Rússia, que começou em 6 de agosto. Em termos de tecnologia militar, os tanques Leopard 1 e 2 ou o veículo de combate de infantaria Marder, bem como lançadores de foguetes, podem ser utilizados.

A mídia russa divulgou imagens que seriam de veículos alemães Marder na região de Kursk. Se as imagens forem verdadeiras, então “a Alemanha não está legalmente envolvida nessa operação militar das forças armadas ucranianas em território russo”, disse Rafael Loss, do Conselho Europeu de Relações Exteriores em Berlim, à DW.

A Ucrânia tem permissão para realizar operações militares desde que cumpra as leis humanitárias: nenhum alvo civil pode ser atacado e os prisioneiros devem ser tratados com justiça. Até o momento, a Ucrânia estaria levando esse conceito a sério.

Direito de se defender

Políticos de diferentes partidos, tanto da coalizão governamental quanto da oposição, também deixaram claro que, do ponto de vista jurídico, a mobilização militar ucraniana não deve ser um problema.

“É claro que um Estado que é atacado tem o direito de se defender, de acordo com a lei internacional, desde que respeite todas as regras, agindo [neste caso] em território russo”, afirma Lars Klingbeil, chefe dos social-democratas do SPD, partido do chanceler federal alemão, em entrevista ao canal público ARD.

Essa declaração do líder do SPD, que se conceitua como um partido pacifista, ainda é relativamente nova. Políticos dos outros dois integrantes da coalizão, os ambientalistas dos Verdes e os liberais do FDP, têm se aventurado cada vez mais nesse tópico. À DW, a deputada verde Sarah Nanni defendeu o uso de armas alemãs na Rússia, embora tenha dito isso antes do início da ofensiva em Kursk.

Roderich Kiesewetter, especialista em segurança do maior partido de oposição, o conservador União Democrata Cristã (CDU), escreveu para a DW no início do ano: “Os ataques da Ucrânia contra alvos militares em território russo não são apenas permitidos pelo direito internacional, mas também são necessários em termos de estratégia militar e fazem todo o sentido”. E tudo isso, no fim das contas, não faz da Alemanha um participante ativo na guerra.

Baseado em lei internacional

Parlamentares alemães têm argumentado a favor da Ucrânia principalmente ao se basearem no Artigo 51 da Carta da ONU, que se refere ao “direito inerente de todo estado à autodefesa individual ou coletiva”.

Wolff Heintschel von Heinegg, especialista em direito internacional da Universidade Europeia Viadrina, em Frankfurt no Oder, confirmou à DW a situação legal com relação ao uso de armas alemãs na Rússia.

Em conflitos armados internacionais, “nenhuma parte é obrigada a restringir as hostilidades ao seu próprio território. Pelo contrário. É um objetivo legítimo enfraquecer as forças armadas do inimigo e, portanto, atacar esses e outros alvos militares autorizados”, disse Heinegg.

Rafael Loss também acredita que “não há requisitos no direito internacional que impeçam a parte atacada de atacar o agressor em seu próprio território.”

Chanceler em silêncio

A situação legal é uma coisa. Já o aspecto político é outra. Por muito tempo, o chanceler federal Olaf Scholz hesitou quanto a fornecer qualquer tipo de arma para a Ucrânia. Durante um longo período, nenhum tanque ou veículo foi entregue. Somente após intensas discussões políticas internas e pressão internacional sobre o governo alemão é que esses sistemas de armas foram finalmente autorizados.

O motivo da hesitação era claro: a preocupação alemã com uma escalada no conflito e, em particular, com a possibilidade de a Alemanha ser arrastada para a guerra. Até hoje, Scholz ainda rejeita a entrega de mísseis de cruzeiro Taurus a Kiev.

Esses mísseis de precisão de longo alcance poderiam até mesmo ser usados para atacar alvos em Moscou a partir da Ucrânia. Uma coisa é certa: até o momento, o chanceler não se manifestou sobre o possível uso de armas alemãs no avanço ucraniano em Kursk.

Eleições estaduais como fator

A atitude do governo alemão tem, provavelmente, muito a ver com as próximas eleições estaduais na Saxônia, na Turíngia e em Brandemburgo. Nos três estados, todos no leste da Alemanha, os ultradireitistas da Alternativa para a Alemanha (AfD), e a aliança Sahra Wagenknecht, populista de esquerda, estão com altos índices de aprovação.

Ambos os partidos rejeitam o fornecimento de armas à Ucrânia e querem melhorar as relações com a Rússia. À rádio Deutschlandfunk, Wagenknecht argumentou: “As eleições no leste também são uma votação sobre guerra e paz”. Ela chegou a fazer possíveis coalizões, dependendo da posição dos parceiros sobre a guerra na Ucrânia.

De partidos um tanto distintos, os governadores de Saxônia, Turíngia e Brandemburgo ecoam o mesmo sentimento, ainda que a política externa não seja uma questão estadual. O governadaor da Saxônia, Michael Kretschmer, da CDU, é contra a ajuda armamentista em parte por razões financeiras – em forte oposição à linha nacional do partido.

Dietmar Woidke, do SPD, de Brandemburgo, pediu que o governo alemão desempenhe um papel de mediador entre Rússia e Ucrânia. E o governador da Turíngia, Bodo Ramelow, do Linke (A Esquerda), pediu uma ordem de paz europeia que inclua a Rússia e um “pacto de não agressão” entre todos os países participantes.

Em julho, 36% dos alemães entrevistados pelo canal ARD disseram que o fornecimento de armas à Ucrânia foi longe demais. No leste, esse número chegou a um em cada dois, ou seja, 50%. Se for confirmado que a Ucrânia está usando armas alemãs na Rússia, o apoio militar de parte da população poderá diminuir ainda mais.