Ao lançar suas memórias, fundador da Microsoft tenta reforçar uma imagem de filantropo, lapidada há décadas. Mas nem todos engolem o “mito do bom bilionário”.A história das origens da Microsoft e de seu fundador, Bill Gates, foi contada inúmeras vezes pela mídia desde que o magnata da tecnologia ocupou pela primeira vez um lugar na atenção pública, nos anos 1980.

Nascido em 1955 de uma família abastada – seu pai era advogado corporativo e veterano da Segunda Guerra Mundial; sua mãe, uma bem-sucedida ativista cívica, atuante em diretorias de bancos e grandes corporações –, Bill Gates programou seu primeiro videogame aos 13 anos de idade. Enviado a uma escola preparatória exclusiva em Seattle, lá fez amizade com o futuro cofundador da Microsoft, Paul Allen. Mais tarde, matriculou-se na Universidade de Harvard, que acabaria abandonando, para fundar a Microsoft com Allen em 1975.

O próprio Gates agora revisita a história de seus primeiros anos em seu livro de memórias, Código Fonte: Como Tudo Começou (Cia da Letras), lançado nesta terça-feira (04/02). Antes da publicação, ele revelou que entre os tópicos discutidos no livro estão “sentir-se desajustado quando criança” e “bater de frente com meus pais quando era adolescente rebelde”, bem como “os desafios de abandonar a escola para apostar num setor que, na realidade, sequer existia”.

Gates planeja uma trilogia autobiográfica. Os outros dois volumes, abordando seus anos como diretor executivo da Microsoft e o posterior trabalho filantrópico à frente da Fundação Gates, virão na sequência.

Apenas mais uma jogada de marketing?

Nas palavras da editora responsável, o novo lançamento é “um livro caloroso e inspirador”. Já para o repórter investigativo americano Tim Schwab, tudo não passa de mais uma “jogada de marketing e branding” dos ricos e poderosos.

“Enquanto outros bilionários são descaradamente egoístas, Bill Gates sempre tentou se apresentar como um humanitário altruísta e um assim chamado ‘bom bilionário’.”

Schwab é autor do livro crítico sobre o fundador da Microsoft The Bill Gates problem: Reckoning with the myth of the good billionaire (O problema Bill Gates: Dando conta do mito do bom bilionário), lançado em 2023. Ele comenta que, nas atuais memórias, “há muito pouco que ainda não sabemos sobre a história pessoal de Bill Gates, e quase nada que seja novo ou revelador”.

Um aspecto, no entanto, virou manchete recentemente: quando Gates reflete que, se fosse jovem nos dias de hoje, provavelmente seria diagnosticado no espectro autista. “Ele dedica algo como meia página no final do livro a esse tópico”, aponta Schwab. Mas mesmo esse novo detalhe não foi apresentado de uma “maneira particularmente pensada ou reflexiva”.

“Converso muito com líderes mundiais”

Foi graças à Microsoft que Gates se tornou o homem mais rico do mundo em 1995, mantendo-se no topo das estimativas da revista Forbes até 2008, quando se afastou da empresa para se concentrar na filantropia.

Desde então, outros bilionários da tecnologia, como Elon Musk ou Mark Zuckerberg, já o ultrapassaram nos rankings da Forbes. No entanto, o patrimônio líquido de Gates só cresceu desde 2008, mesmo considerando-se a inflação. Hoje, aos 69 anos, ele vale cerca de 107 bilhões de dólares (R$ 624,9 bilhões), sendo classificado como a 13ª pessoa mais rica do mundo.

Ao mesmo tempo, Gates desfruta de uma imagem pública muito melhor do que seus colegas magnatas da tecnologia. Essa combinação de riqueza, conexões e reputação positiva tem lhe dado um acesso praticamente inédito a tomadores de decisões pelo mundo, incluindo uma reunião com o presidente chinês, Xi Jinping, em 2023, ou mesmo um recente jantar de três horas com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Durante esse encontro, ambos teriam conversado sobre possíveis curas para o vírus HIV e poliomielite.

“Acho que nós dois ficamos muito animados com isso”, contou Gates ao periódico The Wall Street Journal, acrescentando: “Como a fundação é muito engajada nessas questões globais de saúde, converso muito com líderes mundiais. Nos últimos meses, conversei com o presidente [francês, Emmanuel] Macron, com [a chefe da Comissão Europeia,] Ursula von der Leyen.”

Revolução alimentar na África sai pela culatra

A Fundação Gates tem usado esses contatos para canalizar gigantescos fundos de combate a doenças e fome em diversas regiões. O livro de Schwab, porém, argumenta que os resultados de tais campanhas tendem a ficar aquém de suas metas amplamente divulgadas.

Um ponto particularmente controverso é a atuação na África, onde a organização de Gates teria supostamente injetado quase 1 bilhão de dólares no controverso programa AGRA (anteriormente Aliança para uma Revolução Verde na África). Lançado em 2006, ele prometia dobrar a produção agrícola e reduzir pela metade a fome e a pobreza em 13 países africanos até 2020.

Este prazo não foi cumprido. Segundo uma pesquisa publicada em junho de 2020, o número de indivíduos passando fome inclusive aumentou em 30% nas nações em questão.

Em agosto de 2024, diversas organizações religiosas, agrícolas e ambientais vieram a público exigir reparações da Fundação Gates. Em carta aberta, elas instaram a organização e seus aliados a reconhecerem que seus esforços “fracassaram”.

“Suas intervenções estão empurrando o sistema alimentar da África cada vez mais rumo a um modelo corporativo de agricultura industrial, reduzindo o direito do nosso povo à soberania alimentar e ameaçando a saúde ecológica e humana”, consta da carta.

Os líderes africanos acusam os organizadores por trás da AGRA de promoverem “insumos sintéticos caros (fertilizantes e sementes)” que poluem e endurecem o solo, desestabilizam os ecossistemas locais e deixam “os pequenos agricultores à mercê de preços globais voláteis para manter seus rendimentos”.

Contudo, com a Fundação Gates financiando também pesquisadores e grupos de defesa, além de trabalhar em estreita colaboração com tomadores de decisão da África, qualquer crítico enfrentará uma dura batalha.

Abrindo caminho para Musk

Schwab alerta que Gates ainda é um “investidor privado profundamente interessado em expandir sua riqueza”: “Quando conversa com alguém como Donald Trump ou qualquer outro líder eleito, ele também tem que pensar em sua própria riqueza privada, seus próprios interesses particulares. E então também tem que pensar nos interesses da Fundação Gates, que é altamente subsidiada pelo contribuinte”, esclarece o autor.

“Se você observar a Fundação Gates, um dos projetos dos quais Bill Gates diz mais se orgulhar é um mecanismo de aquisição de vacinas com sede na Suíça: a maior parte do dinheiro para esse projeto vem dos contribuintes.”

Ao mesmo tempo, Gates está conectado aos tomadores de decisões através de contratos governamentais para negócios relacionados ao seu império e por meio de contribuições políticas, tais como a suposta doação de 50 milhões de dólares para a rival de Trump nas últimas eleições presidenciais americanas, Kamala Harris.

“Por anos, Gates normalizou e legitimou o papel da riqueza extrema na democracia, certamente na política americana, e sim, alguém como Elon Musk pode representar um novo passo, uma nova evolução neste tipo de oligarquia, mas eu acho que eles são parte da mesma história”, opina Schwab. “Eu acho que homens de hoje como Elon Musk cresceram sobre os ombros de Bill Gates.”