Aumento da importação de cosméticos feitos na Coreia do Sul pelo Brasil levanta debates sobre comportamento, identidade, miscigenação e padrões estéticos entre as duas culturas.Do extrato de arroz à busca pela glass skin, a skincare coreana virou hoje uma febre de mercado, reforçada por influenciadoras digitais que apresentam produtos e vendem a ideia de que é possível ter uma pele tão lisa e luminosa que lembra o vidro.

Mundialmente, o número de publicações no TikTok com a hashtag #kbeauty, que se refere a produtos de beleza da Coreia do Sul, atingiu seu pico da série histórica em julho – nesse mês, a frequência foi 200% maior do que em julho de 2023.

Um bordão muito associado a essa tendência é “a skincare coreana está em 2050”. E além das redes sociais, o fenômeno também é observado na economia.

A importação de produtos para cuidado da pele feitos na Coreia do Sul pelo Brasil está aumentando e cresceu 57% em 2024 se comparado a 2023, segundo o Banco de Dados de Estatísticas do Comércio de Mercadorias de Nações Unidas (UN Comtrade).

A nível global, o Ministério da Segurança Alimentar e Farmacêutica sul-coreano informou que a exportação dos cosméticos ultrapassou, pela primeira vez, os 10 bilhões de dólares no ano de 2024. O marco coloca a Coreia do Sul como terceiro maior exportador mundial desses produtos, atrás apenas dos Estados Unidos e da França.

Esse avanço reflete o crescente interesse internacional pela cultura sul-coreana como um todo. A popularização de elementos culturais do país tem despertado a curiosidade do público global. Segundo o Ministério de Assuntos Internacionais da Coreia do Sul, os que se consideram fãs de algum produto cultural do país ultrapassaram, pela primeira vez, a marca de 200 milhões de pessoas.

Produtos coreanos conquistam brasileiros

É nesse cenário de exportação da cultura sul-coreana que os produtos de cuidado de pele se destacam. No TikTok, entre usuários do Brasil, o número de publicações com a hashtag #koreanskincare em julho deste ano foi 130% maior do que em julho de 2023.

A expansão dos k-beauty vai além da discussão de cuidados e beleza, e também aponta para diferenças culturais e comportamentais entre a população do país exportador e os usuários importadores.

A antropóloga Nina Jablonski, pesquisadora da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, destaca que os produtos coreanos são feitos e testados em um dos países menos miscigenados do mundo. Suas vendas crescem, no entanto, no país mais miscigenado do mundo.

“Brasileiros possuem aparências muito mais heterogêneas, com diversidade de tom de pele e de comportamentos, se comparados aos sul-coreanos”, afirma.

Marina Cristofani, farmacêutica especialista em cosmetologia, acrescenta que a “genética importa muito nesse quesito da pele, existem grupos genéticos com características mais diferentes”. Para o caso de peles com maior concentração de melanina, ou seja, mais retintas, o nível de colágeno e a própria estrutura de célula da epiderme – camada mais externa da pele – são diferentes e influenciam nas manchas, textura e flacidez.

Considerando que a Coreia do Sul possui uma taxa de diversidade de raças em torno de 8%, segundo dados do Instituto Coreano de Saúde e Assuntos Sociais obtidos em pesquisa realizada de 2018 a 2022, a variedade genética é baixa. “As pessoas coreanas têm uma pele totalmente diferente da brasileira, menos oleosa, mas com maior tendência a manchas”, aponta a médica dermatologista Katleen da Cruz Conceição, especialista em peles negras.

Choque cultural entre os países

Outra diferença é o hábito de tomar sol, difundido de norte a sul no Brasil e favorecido pelo clima do país.

Para Jablonski, esse traço levanta curiosidade do ponto de vista antropológico. Países do leste asiático são mundialmente conhecidos pelos cuidados em se evitar o contato com a luz solar. As brasileiras, por outro lado, estão diretamente conectadas ao turismo de sol e ao ato de bronzeamento natural.

Muitos dos produtos de skincare coreana são conhecidos pelo fator de embranquecimento. Para os brasileiros, no entanto, o que realmente impacta é a qualidade do produto e as embalagens, reforça a dermatologista Conceição.

No entanto, as culturas do Brasil e da Coreia do Sul convergem no quesito de rotinas. Ambas as populações gostam da “ritualização” e da sistematização de um passo a passo de produtos. Não à toa, as longas práticas de cuidado coreana, que incluem cerca de dez itens, são bem recebidas pelos brasileiros.

“O conceito brasileiro, especialmente entre mulheres, envolve muita consciência do corpo. Isso se harmoniza muito com a ritualização da k-beauty, de um sistema de beleza, de dedicar tempo a si mesma para que você se torne a mulher mais bonita que você pode ser”, afirma Jablonski.

A tendência do “natural” nos cosméticos

Além do apelo digital na expansão da k-beauty, há, ainda, um recurso-chave que potencializa a disseminação dos itens: a natureza. Quanto mais natural forem os ativos, maior a propensão de cair no gosto popular. Para Jablonski, um produto “parte da natureza” reforça “a manipulação psicológica, onde os aspectos psicológicos das tendências de beleza realmente vêm à tona”.

Nos itens da Coreia do Sul, é comum encontrar ativos de óleos essenciais, ervas e raízes, como o ginseng. No entanto, as discussões em torno da troca do industrializado pelo natural nem sempre garantem a segurança e qualidade.

Cristofani explica que alguns ativos produzidos em laboratório podem ser mais benéficos que os naturais. “O sintético possui maior faixa de segurança, tem mais estudos. É mais fácil estudar uma molécula isolada do que estudar a reação de várias moléculas.”

Além disso, alguns compostos naturais podem provocar reações alérgicas justamente pela dificuldade em isolar o ativo específico para formular o item em questão. Por isso a importância de consumir produtos devidamente certificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Tons de pele

Historicamente, o tom de pele era usado para definir a hierarquia dentro de uma sociedade. As pessoas com pele mais escura eram associadas ao trabalho externo, ao ato de pegar muito sol enquanto realizavam algum ofício braçal. Na Coreia do Sul, até hoje a pele mais clara é um “ideal de beleza”, aponta Jablonski.

Alka Menon, professora do departamento de sociologia de Yale, reforça que essa hierarquia social se mantém nos dias de hoje, de uma forma atualizada. “Quem não precisa trabalhar tem mais tempo de investir numa rotina de skincare e tomar essas precauções pare evitar o sol”, diz.

Numa era marcada por influenciadores digitais, onde só no Brasil são mais de 2 milhões de perfis, o discurso sobre autocuidado e estética frequentemente impulsiona o segmento e a autocobrança de seguir o passo a passo e até os produtos utilizados pelas blogueiras.

“Se você precisa ter uma rotina mais curta, pode não ter resultados tão bons e os influenciadores vão capitalizar em cima da culpa sobre o tempo disponível”, destaca Jablonski.

Cuidados necessários

A dermatologista Katleen reforça quanto a importância de utilizar qualquer ativo para a pele com o acompanhamento de um profissional qualificado. “Os tratamentos são individualizados”, reforça a médica, que garante que novos produtos ou itens já adquiridos podem ser adaptados dentro da rotina da paciente.

Para além da orientação médica, é importante estar atento às lojas de importação. No Brasil, o órgão responsável pela aprovação e regulamentação de produtos relacionados à saúde pública é a Anvisa. “Sendo constatada a falsificação, publica-se medida preventiva determinando a proibição da fabricação, comercialização, distribuição, uso e apreensão do produto”, esclarece a instituição.

Seja por meio de plataformas online ou lojas físicas, “a maior preocupação é a falsificação e o tempo de armazenamento desses produtos”, reforça Cristofani. Isso porque nem sempre as condições de conservação entre a chegada do item e a liberação alfandegária são ideais para o tipo de mercadoria.

K-beauty e o impacto global da onda coreana

A expansão e a influência do cosméticos sul-coreanos fazem parte da hallyu, também chamada de Korean Wave. Essa onda, incentivada pelo governo sul-coreano para divulgar a cultura do país, ocorre desde os anos 1990, quando os primeiros filmes e séries do país começaram a ser exportados.

“Os investimentos coreanos na indústria de cosméticos e na indústria cultural são uma forma de se conectar como mundo. A Coreia do Sul espera construir parcerias por meio do soft power”, reforça Menon.

Outros elementos da cultura sul-coreana usados para impulsionar o soft power são os doramas, filmes, como Parasita, e as famosas bandas de K-pop, como Blackpink e BTS. Os produtos culturais divulgam uma imagem positiva do país e o colocam como epicentro de discussões internacionais