12/09/2021 - 13:43
Para muitos, o pugilismo é uma luta brutal, mas para quem ama o esporte, ele é uma arte mal compreendida. Inegável é a correlação existente entre golpes repetidos na cabeça e uma certa síndrome neurológica.Em 28 de agosto de 2021, Jeanette Zacarias Zapata foi nocauteada num ringue de boxe de Montreal. Apenas cinco dias mais tarde, ela estava morta, aos 18 anos de idade.
Durante a luta, a pugilista mexicana recebera uma série de socos na cabeça, com o último gancho até mesmo lhe arrancando a boqueira. Tais golpes são celebrados, por supostamente glorificar a arte da luta. Porém uma olhada dentro do cérebro revela uma verdade amarga.
“Você perde a consciência. Se a coisa é séria, seu cérebro começa a sangrar”, descreve o renomado neurólogo belga Steven Laureys à DW. “Nossos cérebros são frágeis, precisam de muita energia. Eles têm quatro grandes artérias, mas um monte de pequenos vasos sanguíneos. Se esses se rompem dentro do crânio, o cérebro é comprimido e se pode morrer.”
A caminho da ETC, a demência de pugilista
Por sua natureza, o pugilismo mira essa parte “frágil” do organismo, uma vez que o cérebro é que aguenta o maior impacto das lutas. “Dez, 20 anos mais tarde, o que se vê é um cérebro murcho, doente e demente, devido aos golpes repetidos”, prossegue Laureys. “São os danos de longo prazo que chamamos de punch drunk [bêbado de socos], ou demência de pugilista, ou, agora, encefalopatia traumática crônica (ETC).”
Não há cura para essa “síndrome de boxeador”, e os danos são tão abrangentes que podem até mudar a personalidade do paciente, ao afetar áreas do órgão responsáveis pela memória e emoções. “As células cerebrais interagem através de 'pontes'. Quando se recebe um golpe, essas conexões literalmente se quebram. Se você sacode, você estraga.”
O que torna o boxe ainda mais traiçoeiro é que as lesões não são imediatamente visíveis. A sociedade nunca exigiria que um tenista continuasse a jogar com um braço fraturado, ou um jogador de futebol, com uma perna quebrada. Mas espera-se dos pugilistas continuarem lutando apesar das repercussões invisíveis das lesões cerebrais.
“Muitos lutadores, jovens, têm ETC sem nem saber, porque não se vê”, observa Laureys. “É preciso tomografias cerebrais especiais para ver o que está acontecendo lá dentro. Os efeitos só são visíveis para os próprios pugilistas dez 20, 30 anos mais tarde.”
Boxe, arte filosófica
A falta de visibilidade contribui para a complexidade do boxe, pois, para quem vive e respira esse esporte, dominar sua arte vai muito além das brutais primeiras impressões.
“Muitos pensam que os boxeadores entram no ringue para se espancar, machucar um ao outro. Não, trata-se de ter ideias: como posso ser mais rápido no ringue? Evitar socos, atingir e não ser atingido?”, defende Michael Timm, treinador-chefe de um centro de treinamento olímpico da Alemanha. “Irritar o oponente para ele não conseguir acertar um golpe. Esta é a arte do boxe: esgrima com os punhos.”
Muitos lutadores insistem que a melhor proteção é a habilidade de evitar socos. O ex-campeão de boxe amador alemão Kevin Boakye-Schumann confirma: sua meta principal é “garantir que eu não vá apanhar muito”. “Boxe é uma questão de bater sem apanhar. Muitos lutadores implementaram isso com perfeição, e vivem vidas totalmente normais até os 50, 60, 70 ou 80 anos.”
Antes de começar a lutar, na adolescência, Boakye-Schumann admite que tinha uma “impressão errada” do esporte, o qual ele agora considera mal compreendido. “Boxear é mais do que dois homens ou mulheres batendo um no outro. Tem muito a ver com inteligência, dieta, pontos fortes individuais e disciplina. Pode levar a pessoa muito longe na vida.”
Histórias de final feliz
Para Sarah Scheurich, duas vezes campeã amadora alemã, o boxe representou uma guinada de vida, e ela crê que nunca teria se formado sem ele. “Em criança, eu tinha TDAH [transtorno do déficit de atenção/hiperatividade]. O boxe me trouxe sucesso e autoconfiança. Mas também me permitiu liberar minha energia, para eu poder ser um pouco 'normal'.”
O boxe pode ter ajudado muitos, mas nem todos os que atuam no esporte precisam de “salvaçã”o. A alemã Nina Meinke é profissonal, detentora do título europeu de peso-pena. “Eu realmente não posso me queixar, tive uma boa infância”, conta, durante uma sessão de treinamento em Berlim.
“Quando estava com 12 anos, quis começar a boxear. Depois do primeiro treino, fiquei acabada. Lembro que voltei para casa, e não conseguia nem levantar um copo. Aí pensei: 'Adoro!' Desde então, não quero fazer outra coisa.”
“Gerações futuras não vão entender”
Da mesma forma que seus históricos, também as experiências subsequentes dos lutadores variam muito. “Eu tive 150 lutas e não tenho nem um machucado na sobrancelha”, diz Timm. “Tenho algum problema de fala? Acho que não. E tive muitas lutas. O estilo de vida também importa.”
O neurólogo Laureys admite que diversos fatores representam um papel no esporte, mas não é fã da linha de raciocínio de Timm. “Evidências anedóticas significam que sempre há quem não desenvolve a doença. Mas não se pode ignorar a forte correlação entre os golpes, o cérebro e essa doença neurológica.”
Fãs do ringue argumentam que outros esportes têm taxas de fatalidade mais elevadas. Ainda assim, o que torna o boxe diferente é que o alvo não é uma linha final, nem colocar a bola no fundo de uma cesta, mas sim acertar na cabeça.
“Na Roma antiga, os gladiadores se matavam. A gente não faz isso, é ilegal Acho que gerações futuras vão olhar do mesmo modo para o pugilismo como é praticado hoje”, avalia o neurólogo belga. “Como é possível que, enquanto sociedade, nós permitimos a esses jovens atletas receberem golpes na cabeça que os deixam doentes?”