17/09/2025 - 14:35
Portaria institui o Programa Educação para a Cidadania e para a Sustentabilidade. Documento assinado pelo MEC é endossado por 120 organizações da sociedade civil.A pouco mais de um ano para as novas eleições presidenciais e em meio a um efervescente cenário de embates político-partidários, o Brasil irá inserir o ensino da democracia, oficialmente, nas salas de aula. O Ministério da Educação (MEC) publicou nesta quarta-feira (17/09) a portaria 642, instituindo no país o Programa Educação para a Cidadania e para a Sustentabilidade.
Capitaneado pela Secretaria de Educação Básica do MEC, o programa tem por objetivo contribuir para que crianças e adolescentes desenvolvam as capacidades necessárias ao pleno exercício da cidadania e à “participação autônoma, responsável e solidária na vida social democrática”. Para isso, a iniciativa estabelece parâmetros para coordenar ações desenvolvidas pelo governo federal, estados, municípios e Distrito Federal.
A adesão de estados e municípios é voluntária, mas espera-se que o programa chegue a 1 milhão de estudantes por ano. A ideia é estimular redes estaduais e municipais de educação a inserir na rotina de ensino e aprendizagem temas abordando o que é e para que serve a democracia, como são estruturados os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, assim como questões relacionadas ao exercício da cidadania e da democracia no dia a dia, como a participação social na estruturação das políticas públicas.
Para isso, o MEC irá criar uma Matriz Nacional de Saberes em educação cidadã e também estruturas que permitam a execução da política, como currículos, material didático e cursos para formação de professores, em parceria com entidades da administração pública e vinculadas aos poderes Legislativo e Judiciário.
Caberá aos estados e municípios desenvolver as ações necessárias para que suas escolas tenham acesso aos documentos e aos materiais. A expectativa é que cada estado e município designe um responsável por conduzir a política localmente, após aderir à iniciativa.
O programa foi apresentado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Conselho Nacional do Ministério Público (CNPM), Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele nasceu da mobilização de 120 instituições da sociedade civil, reunidas na Rede Nacional de Educação Cidadã (Rede NEC), e tem como inspiração políticas de países como Alemanha e França.
“A gente quer possibilitar que os estudantes se exponham à democracia e aprendam que a política é importante, que desenvolvam a crença da autoeficácia, ou seja, que o jovem entende que se ele agir e se organizar, consegue fazer a mudança”, afirma João Tavares, advogado e diretor executivo da Rede NEC.
Espera-se que os alunos aprendam a reconhecer, compreender e valorizar a Constituição Federal e os fundamentos do Estado democrático de direito; os fundamentos, as características e os procedimentos do processo de votação; sobre o pluralismo de ideias e a importância do diálogo inclusivo, pacífico, tolerante e construtivo; e a valorizar as múltiplas expressões da diversidade humana.
Também está prevista a elaboração e execução de um plano de monitoramento e avaliação da implementação do programa, bem como uma pesquisa bianual para sistematizar as experiências.
Haverá ainda um apoio financeiro a quem aderir ao programa, por meio das dotações consignadas na Lei Orçamentária Anual ao Ministério da Educação. Estratégias e prazos para a implementação de ações complementares para as populações específicas serão estabelecidos, no futuro, pelo MEC.
Promessa não cumprida
O Brasil já estabelece na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, a formação cidadã como uma das finalidades da educação básica. A própria Constituição Federal de 1988 também estabelece que um dos objetivos da educação é preparar para o exercício da cidadania, sendo esta uma competência do Conselho Nacional de Educação.
Entretanto, defende Tavares, o processo de redemocratização do Brasil, iniciado em 1985, depois do fim do regime militar, deixou como promessa não cumprida a democratização do sistema político e da cultura democrática. “Existe uma frase do Norberto Bobbio (filósofo e político italiano, 1909-2004) que diz que a educação para a cidadania é uma das promessas não cumpridas da democracia”, afirma.
Em 2022, o Brasil participou pela primeira vez do ICCS (International Civic and Citizenship Study, em inglês), o maior estudo internacional dedicado à educação cívica e cidadania. A ideia era avaliar o quanto estudantes do 8º ano do ensino fundamental estavam preparados para atuar como cidadãos num mundo globalizado, explica Maribel Sevilla, coordenadora da pesquisa no país. Na escala, em comparação a outros 22 países, o Brasil ficou em último.
“Os resultados mostram que os alunos acham que eles não estão estudando ou sendo preparados para engajamento político futuro, ou seja, para ter uma carreira política ou atuar como cidadão junto às instituições cívicas, sociais e políticas”, afirma Sevilla. O estudo também está servindo de referência para orientar o programa em criação pelo MEC.
De acordo com o professor, cientista político e diretor do Movimento Voto Consciente, Humberto Dantas, um problema existente é que os temas cidadania e direitos e deveres na sociedade vêm sendo levados às salas de aula desde a proclamação da República, em maior ou menor escala. Contudo, sempre acabaram a serviço dos interesses do regime político vigente no Brasil.
“Em boa parte da história, esse tipo de conteúdo foi utilizado dentro das escolas como de doutrinação do regime vigente. Getúlio Vargas, por exemplo, distorceu completamente a ideia de educação para o exercício da cidadania e implementou conteúdos dentro das escolas de louvor à sua ditadura”, lembra.
Isso se repetiu, segundo Dantas, no regime militar (1964-1985) com as disciplinas Educação Moral e Cívica e também Organização Social e Política do Brasil (OSPB). “Eram disciplinas que doutrinavam os indivíduos a entenderem o sentido de se viver num país governado da forma como era governado”, afirma.
Mas, ao invés de reformular os currículos à luz da democracia, o sistema educacional brasileiro optou por retirá-los de sala de aula. Esse hiato na história deixou um desfalque estrutural, pois professores não foram formados nem matrizes curriculares pensadas para colocar em prática o que está previsto na Constituição e na LDB.
“O MEC hoje pode contribuir de uma maneira muito significativa tentando, minimamente, construir um conteúdo basilar mínimo daquilo que precisa ser ensinado em termos de política, democracia e cidadania dentro da sala de aula”, afirma Dantas.
Segundo Tavares, a expectativa é que o programa do MEC também crie as condições para que o tema democracia e educação cidadã não seja deixado de lado frente a questões consideradas mais urgentes, como a melhoria da infraestrutura das escolas e a qualificação geral dos professores e educadores.
Há alguns países no mundo que já têm iniciativas de educação cidadã em âmbito nacional. A França tem uma diretoria dentro do Ministério da Educação que promove a educação para a democracia, assim como o Reino Unido. Na Alemanha, há uma agência criada em 1952, após o fim da Segunda Guerra, com orçamento próprio e independência para definir diretrizes de formação de professores e material didático para fortalecer a cultura democrática no país. Na América Latina, há iniciativas incipientes no Chile e na Colômbia.
Diferença entre educar e doutrinar
De acordo com a Rede NEC, a educação cidadã é o conjunto de competências, habilidades, atitudes, valores e emoções que preparam as pessoas para atuar de forma mais consciente e engajada numa democracia. Mais do que ensinar o conceito de democracia, é também explicar como ela se pratica e demonstrar a crianças e jovens que eles podem ter um papel ativo nela.
Por isso, a educação cidadã abarca um guarda-chuva de temas que precisam ser tratados pelas diferentes instituições que compõem uma sociedade democrática, como as mudanças climáticas, o combate à desinformação, ética no ambiente digital e o combate à violência doméstica e de gênero.
Além disso, passa também por municiar a população sobre as competências e deveres dos diferentes entes políticos. Para Tavares, é ir além da democracia formal, é pensar numa democracia social. Esta segunda passa por ensinar os estudantes a participar, cobrar e entender o seu lugar como cidadãos. “A gente sempre puxa para o lado das políticas públicas, da institucionalidade, porque a alavanca para grandes mudanças sociais. Em escala, está em você entender e se apropriar da política, da importância da política”, defende Tavares.
Isso, porém, é diferente de doutrinação política, pontua Tavares. “É importante isso ser feito de forma suprapartidária, pois educação cidadã é diferente de doutrinação. A doutrinação não necessariamente é pejorativa, mas ela é de função constitucional dos partidos políticos”, explica.
Segundo Dantas, há uma diferença entre educar e doutrinar. “Educar significa construir e transmitir valores minimamente desejáveis para uma sociedade. A democracia é, indiscutivelmente, um valor desejável na sociedade brasileira”, diz. Doutrinar, segundo ele, é apresentar apenas um caminho para chegar a parte dos valores desejados pela sociedade.
O papel de um programa nacional é justamente preparar o professor para que ele não leve para dentro da sala de aula suas preferências ideológicas. Para fazer isso, entretanto, o Brasil precisa vencer o momento de polarização política atual.
“As pesquisas com professores mostram que eles não se sentem confortáveis abordando temáticas associadas à política dentro da sala de aula, não só por uma questão de falta de preparo, mas também por ameaças e insegurança. Nós precisamos, em alguma medida, arrefecer o sentimento de que existem verdades absolutas na política”, pondera Dantas.
Tavares defende que é preciso aplicar no Brasil um princípio disseminado na Alemanha, país que visitou ao ser escolhido como um “Young Global Changer” (YGC) pela Global Solutions Initiative, rede de think tanks baseada em Berlim que fornece propostas a organizações internacionais como o G20 e o G7. “Eles repetem que o que é controverso na sociedade tem que ser trazido como controverso para a sala de aula”, lembra.
Iniciativas nos três Poderes
Mesmo antes de ter um programa nacional, a educação cidadã já é o mote de iniciativas de organizações dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo nacionais. A Corregedoria Geral da União (CGU), por exemplo, tem um programa de educação cidadã coordenado pela Secretaria de Integridade Pública, voltado para estudantes, professores e escolas da Educação Básica, incluindo os ensinos fundamental e médio e a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
De acordo com o órgão, a iniciativa é realizada desde 2007 e atingiu cerca de 6,3 milhões de estudantes e 22,3 mil escolas, por meio de seis projetos diferentes. Entre os temas abordados, estão a autoestima, o combate ao bullying, a democracia, a participação social, a transparência, a preservação do meio ambiente, o combate à corrupção, entre outros.
Um dos programas mais antigos do Brasil é o “Cidadania e Justiça também se aprendem na escola”, mantido pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), que nasceu no interior do Paraná, em 1993, quando o atual desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) Roberto Bacellar era juiz na comarca de Umuarama.
Tudo começou por meio de uma cartilha, que ensinava direitos e deveres e como resolver conflitos, iniciativa do próprio Bacellar a pedido do ex-presidente da AMB Francisco de Paula Xavier Neto. Na época, o magistrado havia regressado da Alemanha, onde havia visto cartilhas semelhantes sendo entregues em pontos de ônibus e estações de metrô, e quis promover algo semelhante no Brasil.
Bacellar decidiu expandir a ideia, depois da sugestão de um publicitário, e levar as cartilhas para as escolas. Desde então, nunca parou. Hoje o programa já chegou a 7 milhões de crianças e a todos os estados da federação, incluindo a ida de juízes e outros funcionários do judiciário às escolas, visitas aos tribunais de justiça, produção cultural, práticas de justiça restaurativa e mediação.
O projeto também tem parcerias com outros órgãos, como o Tribunal Regional Eleitoral (TRE), o que permite levar urnas eletrônicas que já não estão em utilização pelo sistema eleitoral às escolas. De acordo com Bacellar, um dos objetivos é também fazer com que as crianças sejam estimuladas a ver o lado positivo de cada cargo do poder, inclusive dos cargos eletivos da política.
“Eles fazem simulações, julgamentos, fazem peças de teatro. É uma coisa maravilhosa, porque daí vem a criatividade deles e eles trazem algumas coisas inovadoras”, afirma Bacellar.
O uso da criatividade dos alunos, por exemplo, já os levou a usar os ensinamentos para julgar o rio Atuba, em Curitiba, por ter entrado na casa deles. O debate abriu espaço para falar de mata ciliar, as árvores, assoreamento do rio e ocupação irregular, depois virou matéria jornalística e terminou se transformando numa ação civil pública do Ministério Público para despoluir o curso d’água.
“Eles perceberam que são agentes de transformação. Ali, para mim, despertou a cidadania. Aquelas crianças nunca mais vão ser as mesmas, né?”, diz Bacellar.