04/03/2021 - 17:18
Presidente da Sociedade Paulista de Infectologia estima mais três a quatro semanas de alta nas mortes diárias. “Bolsonaro boicota medidas para conter pandemia, e pessoas estão se aglomerando no dia a dia”, afirma.Antes exemplo de controle de epidemias e campanhas de vacinação, o Brasil passou da “vanguarda para a retaguarda” e hoje é uma lição sobre o que não deve ser feito durante uma pandemia. Na contramão da queda diária de mortes registrada no mundo, o país bate seguidos recordes de óbitos pela covid-19 e deve ver esse número crescer por mais três a quatro semanas.
A análise é do epidemiologista Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza, presidente da Sociedade Paulista de Infectologia e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que vem trabalhando com modelos de simulação computacional sobre o comportamento da pandemia e as medidas para combatê-la.
Em entrevista à DW, ele afirma que o Brasil está “sujando” o seu nome no debate sobre saúde pública, lembrando que em 2011 o país foi tema de uma edição especial da revista científica The Lancet que reconhecia seus méritos nas áreas de doenças infecciosas e de atendimento de emergência.
Questionado sobre as causas da piora recente da pandemia, ele aponta Jair Bolsonaro como o principal responsável: “Temos um presidente bastante popular e que é um comunicador eficaz, que tem boicotado as medidas (…) para conter a pandemia.”
Para Fortaleza, a variante de Manaus e as festas de fim de ano e no Carnaval contribuíram para acelerar o “caminho rumo ao caos”, mas não são a causa principal do recorde de mortes diárias, que chegou a 1.910 nesta quarta-feira (04/03). “As pessoas estão se aglomerando no dia a dia. A causa é o não cumprimento das medidas de distanciamento social (…) Infelizmente, a projeção é de que irá piorar”, diz.
Membro do Centro de Contingência contra a covid-19 do estado de São Paulo, ele afirma que a decisão de o governador paulista, João Doria, de colocar o estado inteiro na fase vermelha por duas semanas a partir do próximo sábado “demorou” para ser tomada, e critica a inclusão de templos religiosos no rol de atividades essenciais, que permite que continuem abertos. “Vários estudos mostram templos como locais de alta transmissão, as pessoas estão aglomeradas, muitas cantando”, diz.
DW Brasil: O Brasil é o único entre os principais países que registrou alta no número diário de mortes, pela média móvel de sete dias, entre o início de fevereiro e o início de março. Por que o Brasil está na contramão do mundo neste momento da pandemia?
Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza: Não tenho como não entrar na questão política. Temos um presidente bastante popular e que é um comunicador eficaz, que tem boicotado as medidas dos estados e de alguns municípios para conter a pandemia. Mesmo quando os estados tentam tomar medidas mais draconianas, a população se revolta, devido a mensagens negacionistas contínuas e repetidas do governo federal. E aí temos muita dificuldade para ter adesão às medidas de restrição. Você fecha bares, mas as pessoas se reúnem em casas e fazem festas com aglomeração e bebida. Uma medida governamental não funciona se é sistematicamente boicotada pela população.
Quando esse boicote é estimulado pelo presidente da República, isso se torna uma questão institucional grave. Ainda mais grave porque o Brasil tem boa fama no controle de epidemias, sempre foi muito bem avaliado mundialmente na resposta ao zika vírus, à dengue, e nem vou falar da Aids, onde somos um exemplo, apesar de isso também estar sendo desmontado. Sempre vacinamos melhor que a maior parte dos países europeus e os Estados Unidos. No entanto, passamos da vanguarda para a retaguarda mundial nesta pandemia.
A variante do Amazonas é parcialmente responsável por essa alta?
A segunda onda que afetou a Europa não precisou da variante britânica, ela foi uma onda da variante normal. A variante britânica surgiu no meio da segunda onda. Aplico isso aqui também. O pico que vemos no Brasil não precisava da variante do Amazonas para ocorrer. Ele é um agravante, que surgiu exatamente pela quantidade de casos, porque quanto mais casos, mais chance de surgir uma mutação que determine uma variante mais transmissível.
A variante britânica se transmite de 40% a 80% mais que o coronavírus original. Por analogia, supõe-se que a cepa brasileira também seja mais transmissível. Sabemos que ela está disseminada em todo o país. E há impressões médicas iniciais de que ela afeta mais pessoas jovens e causa uma doença mais grave. Não precisávamos da variante para chegar a esse colapso, mas aparentemente ela está contribuindo.
Também não precisávamos das festas de ano novo e do Carnaval para chegar ao colapso, que estava previsto desde novembro. Mas não tenho dúvida que as festas de fim de ano e o Carnaval contribuíram para acelerar o caminho rumo ao caos. A variante e as festas são fatores contributivos, e não a causa essencial do fenômeno. As pessoas estão se aglomerando no dia a dia. A causa é o relaxamento, o não cumprimento das medidas de distanciamento social.
Nesta quarta-feira, o Brasil registrou o recorde de 1.910 novas mortes por covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde, que superou o recorde anterior, de terça-feira, quando foram 1.641 mortes. Qual a projeção para as próximas semanas?
Infelizmente, a projeção é que irá piorar. Quem fez a projeção mais recente foi o [Instituto] Butantan, e ela mostra março e abril como meses de crescimento da covid. Em geral, [a evolução das] mortes segue três ou quatro semanas depois da ocorrência dos casos. Porque os casos acontecem, ficam graves, vão para a UTI, a vida é prolongada. A morte indica como estava a transmissão três ou quatro semanas atrás. Como a transmissão aumentou, é plausível que, por mais três ou quatro semanas, pelo menos, as mortes continuem nessa crescente.
Ontem [terça-feira], graças à atividade do comitê de contingência da covid no estado de São Paulo, do qual faço parte, conseguimos que o governador colocasse todo o estado na fase vermelha, que significa fechamento de serviços não essenciais. Não chega a ser um lockdown, pois não há controle rigoroso de pessoas circulando, mas é uma diminuição de mobilidade.
Essa decisão veio no momento certo ou demorou para ser tomada?
Demorou, claro. Mas, ainda que tardia, é uma medida correta. Só que tem que ser fiscalizada para que seja de fato cumprida pelos prefeitos. Já tem prefeitos, de cidades como Ribeirão Preto, dizendo abertamente que não vão cumprir.
O governo paulista decidiu manter as escolas abertas, um tema controverso durante a pandemia. Qual é a sua avaliação?
É um grande debate mundial. Templo e igreja não tem nenhuma desculpa para manter abertos, além de ser contra o paradigma religioso de que Deus é onipresente e não está só dentro do templo. Eles foram decretados como serviços essenciais, do que eu discordo, ainda mais em um momento em que os meios de comunicação virtual são tão importantes. Vários estudos mostram templos como locais de alta transmissão, as pessoas estão aglomeradas, muitas cantando.
Sobre as escolas, há bons argumentos pró e contra. Além dos argumentos dos pedagogos, alguns epidemiologistas mostram que, em circunstâncias controladas, dá para manter a escola aberta, que o problema não é dentro da escola. Mas há a mobilidade e aglomerações pré-escolares e, dependendo da situação, se a gente chegar a uma ocupação de escolas de 50% ou 60%, as simulações preveem algo catastrófico.
Por outro lado, há simulações britânicas que mostram que se você fizer o rastreamento de contato você poderia abrir a escola sem problema. Mas muitos dos requisitos usados na Europa para abrir escola são impossíveis de cumprir no Brasil. Eu tendo ao fechamento das escolas, mas não é uma resposta simples e requer mais debate.
A ocupação dos leitos de UTI está acima de 80% em 19 unidades da federação. Duas semanas atrás, eram 13 unidades da federação nesse nível de alerta. Que risco isso implica para a população?
Vou dividir a resposta em duas. Primeiro, o risco, evidentemente, é não ter mais leitos de UTIs. Muitos que defendem que pode abrir tudo se aumentar os leitos de UTI acham que é só por mais uma cama. Não é. Mais leitos significam mais enfermeiros e médicos capacitados para UTI, mais ventiladores mecânicos e a necessidade de oxigênio, o que para alguns estados é crítico. A capacidade de criar leitos de UTI é limitada.
Mesmo que nós tivéssemos UTIs para todos, seria um caos. De um a dois terços das pessoas que vão para UTI morrem, mesmo com o melhor atendimento. É uma falácia o que vem sendo dito, principalmente por pessoas ligadas ao varejo e alguns políticos, que pode abrir tudo e que o importante é ter mais leitos de UTIs. Mesmo com leitos, você tem um aumento de mortes importante.
Não há recursos humanos infinitos, o oxigênio não é infinito e a quantidade de ventiladores mecânicos não é infinita. A quantidade de estados com a ocupação quase total de UTI significa o prenúncio do caos, as trombetas do apocalipse.
No momento, 3,4% da população do Brasil recebeu a primeira dose da vacina e, em média, o país tem aplicado 180 mil doses por dia. Esse ritmo é suficiente para vencer a velocidade de contaminação do vírus?
Evidentemente que não. Países que vacinaram rapidamente, como Israel, não apostaram só na vacina. Fizeram também distanciamento social. É improvável que a gente consiga antes de meados do segundo semestre ter vacinado toda a população. Enquanto isso, o vírus se transmite rapidamente, e há a possibilidade da emergência de novas variantes.
A fase que o Brasil atravessa na pandemia envia alguma lição para outros países?
Uma lição negativa. Assim como os Estados Unidos, o Brasil vai ficar para a história como exemplo de má condução na pandemia. O sistema de saúde brasileiro foi contemplado em 2011 com toda uma edição da revista Lancet, e um dos artigos mais importantes o apresentava como um país que em geral teve muito sucesso no controle de doenças infecciosas. Agora estamos lamentavelmente sujando o nosso nome. Aderimos ao negacionismo, que existe em todo o mundo, mas aqui foi uma questão mais grave. O Brasil fica como um alerta a outros países.
No Brasil e nos Estados Unidos, seus líderes populistas trabalharam incansavelmente para desacreditar a visão dos experts. Isso não é novo e existiu, por exemplo, na campanha pelo Brexit, quando um dos slogans era “Don't listen to experts, listen to your heart” [“Não ouça os especialistas, ouça o seu coração”, em português]. Mas vem crescendo e chegou ao ápice com Bolsonaro, com suas aglomerações deliberadas, fazendo lives contra o uso de máscaras, promovendo medicações sem resultado e uma postura extremamente dúbia sobre a vacina. Enquanto o ministério negocia compra de vacinas, ele difama as vacinas como um todo e a Coronavac, por ser de uma empresa chinesa, já que a xenofobia faz parte desse pacote ultraconservador.
Sem o Ministério da Saúde, os estados ficaram à mercê de si próprios e cada estado agiu de maneira diferente. A falta de coordenação nacional é um ponto nevrálgico na catástrofe da pandemia no Brasil. O outro, que também vem no pacote ultraconservador, é a falta de empatia. Um darwinismo social, acreditar que está morrendo quem tinha que morrer mesmo, e que a gente tem mais é que abrir, deixar morrer uma porção de gente e continuar a nossa economia com os sobreviventes. Lembrando que vários estudos na Inglaterra, nos Estados Unidos e aqui no Brasil mostram que pobres, pardos e pretos morrem mais. Não deixa de ser uma agenda social e racial.