01/09/2025 - 16:22
De passagem por Espanha, Reino Unido, Portugal e Holanda, pesquisadores procuram resquícios inéditos da história dos povos indígenas entre os séculos 17 e 19.Existe um mantra que diz que a história indígena é uma história a se fazer. Partindo dessa premissa, dois pesquisadores brasileiros decidiram percorrer arquivos de museus e nações europeias em busca de evidências que possam ajudar a contar histórias ainda desconhecidas dos povos indígenas do Brasil.
A professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fellow na University of London Suzane Costa e o professor visitante da UFBA e fellow no King’s College de Londres Rafael Xucuru-Kariri estão visitando durante um ano arquivos, museus e bibliotecas da Espanha, Reino Unido, Portugal e Holanda em busca de cartas e evidências de escritos de povos indígenas brasileiros.
A pesquisa é a terceira etapa do projeto As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil, iniciado há 15 anos com o objetivo de coletar, organizar e publicizar cartas escritas por indígenas em três importantes períodos da história literária e política do Brasil: 1630-1680, época do Brasil Colônia, 1888-1930 e 1999-2020. Até agora, foram reunidas cerca de 2 mil cartas; destas, 1,3 mil estão disponíveis digitalmente no site do projeto.
Com base nesse acervo e também no levantamento da Biblioteca Nacional das fontes de interesse do Brasil em arquivos da Espanha, França, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Áustria, Itália, Vaticano e Estados Unidos, os pesquisadores montaram um roteiro de visitas a serem feitas até 2026.
“Tem muita coisa já digitalizada, mas tem alguns materiais que a gente também pode encontrar fisicamente e que ainda não foram digitalizados por esses grandes arquivos europeus”, diz Costa.
Em outubro, a dupla estará em Portugal para visitar o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, um dos mais antigos do mundo, aberto em 1378, e o Arquivo Histórico Ultramarino. Em seguida, pretendem ir uma segunda vez a Haia, na Holanda, para buscar novos documentos no Arquivo Nacional – eles já fizeram uma viagem desde que chegaram ao Reino Unido, onde estão morando durante a pesquisa.
Também nos planos está uma visita a campo em Oxford, na Inglaterra, e ao British Museum, em Londres. “Eles [British Museum] têm um departamento muito interessante agora de América Latina e estão convidando pesquisadores e pesquisadoras indígenas para fazer intervenções e acompanhamento do material que eles aprisionam lá”, conta Xucuru-Kariri.
Há o sonho ainda de conseguir financiamento e autorização para visitar o Arquivo Nacional Francês, conhecido como Archives Nationales, em Paris, que pode ter documentos da relação dos franceses com os indígenas potiguaras, e também os arquivos do Vaticano, em busca da memória perdida dentro das cartas da Companhia de Jesus.
Os desafios da pesquisa nos arquivos europeus
Encontrar as cartas nos arquivos europeus não é tão simples como parece, requer o uso da imaginação e o levantamento de hipóteses não previstas na história, como considerar mulheres e indígenas como autores de cartas escritas aos governos europeus durante o período colonial.
E os documentos estão arquivados a partir de uma lógica europeia, que coloca os personagens importantes para locais como Portugal, Espanha e Holanda na centralidade dos fatos. Os arquivos não estão catalogados como cartas dos indígenas, mas cartas do país, de um determinado comandante ou, por exemplo, da Companhia das Índias Ocidentais.
Tampouco haverá um destaque para indígenas nas cartas ou matérias jornalísticas arquivadas, ou uma ala do museu dedicada a eles. Eles também nem sempre estarão nas estantes dedicadas ao Brasil.
“A gente sabe que essas pessoas [indígenas, mulheres e negros] são protagonistas dessa história, mas não sabe como viveram esse protagonismo em suas próprias vidas. Toda a montagem desses personagens, dessas pessoas, tem uma adjetivação europeia. É o arquivo deles”, diz Xucuru-Kariri.
De acordo com o pesquisador, a primeira vez que a Europa começou a discutir textos considerando os povos indígenas como autores foi entre a década de 1970 e 1980, com a publicação da obra Nova Crônica e Bom Governo, escrita pelo cronista indígena Felipe Guamán Poma de Ayala em 1615.
O documento estava no Museu Real da Dinamarca e, para Xucuru-Kariri, isso reflete os desafios da pesquisa que os brasileiros estão fazendo nos arquivos europeus. “Até então a Europa só discutia a colonização a partir da sua própria perspectiva”, diz.
A carta que despertou novas possibilidades
Em outubro de 1654, o indígena potiguara Antônio Paraupaba escreveu uma carta ao Grande Pensionário da Holanda, Johan de Witt, preocupado com sua família. Paraupaba queria retirá-los da ilha das Caraíbas, sob controle neerlandês, e levá-los aos Países Baixos. Buscava, sobretudo, informações sobre a esposa Paulina.
Oficial de cavalaria da companhia do comandante Broeckhuijsen, Paraupaba havia deixado a Paraíba rumo à Europa em 1625, com o pai e uma dezena de indígenas. Lá, foi um dos principais articuladores da aliança entre os potiguara e os neerlandeses. Na época em que a carta foi escrita, essa relação já havia ruído.
O documento estava no Arquivo Nacional de Haia, dentro do inventário dos arquivos de Johan de Witt, entre os anos de 1653 e 1672, e foi encontrado por Rafael Xucuru-Kariri enquanto ele procurava por resquícios da história de Paulina. A tradução foi publicada em 2024 na Revista de História da Universidade de São Paulo (USP).
O achado motivou ele e Costa a buscarem por novos materiais nos arquivos europeus e a iniciarem a terceira fase da pesquisa, prevista no projeto desde 2018, com a busca de documentos dos séculos 17, 18 e 19 – algo que só agora está em curso.
Costa se mantém com uma bolsa da Capes destinada a pesquisadores de destaque, e Xucuru-Kariri conseguiu o fellowship após ter sido premiado na edição de 2024 do Prêmio Capes de Tese na área de sociologia.
O que os pesquisadores querem encontrar
Apesar de as cartas serem a prova documental e a motivação para vasculhar os arquivos europeus, o objetivo principal dos pesquisadores não é necessariamente achar os documentos, e sim pistas que possam contar a história de pessoas que o Brasil desconhece.
“A gente está indo em busca de todo o complexo do fato, mas não da materialidade em si, porque a gente acredita que [as cartas] estão lá, mas a gente não pode afirmar que vai encontrar”, afirma Costa.
Isso porque muitos documentos de autoria de indígenas, mulheres e negros escritos durante o período colonial não foram conservados. “Eles não eram importantes, não eram considerados relevantes para construir uma memória, para construir história”, explica ela.
Um exemplo é a própria carta de Paraupaba, encontrada pelos pesquisadores enquanto buscavam informações sobre Paulina. Eles acreditavam que ela pudesse ter escrito algo ou feito demandas diretas ao governo neerlandês, o que os levou aos arquivos de Witt.
Costa afirma que seria muito bom achar as cartas, mas principalmente as evidências do que não foi documentado e, a partir disso, montar o quebra-cabeça da vida de algumas pessoas, como Paulina e Paraupaba: saber quem eram, por onde passaram, o que fizeram e qual o legado que deixaram.
“O século de ouro [dos neerlandeses] foi construído com povo indígena. Se não fosse o povo indígena, esse século não seria tão dourado”, aponta Costa, que também busca identificar a participação das mulheres indígenas nesse período histórico.
O sonho de levar as cartas para as escolas
O interesse de Costa pelas cartas dos povos indígenas brasileiros nasceu por acaso, quando era professora do magistério indígena – hoje licenciatura intercultural indígena.
Ao fim de uma aula, ela viu seus alunos se reunirem para escrever coletivamente um documento, algo que testemunhou pela primeira vez. O assunto era “a escola indígena que a gente quer”, e destinatário, o atual senador e então governador da Bahia Jaques Wagner (PT).
“Ver aqueles indígenas todos reunidos foi uma cena incrível. Foi lindo eles dizendo tudo o que eles queriam para a escola”, conta.
O relato dessa experiência acabou indo parar na tese de doutorado de Costa e motivou alguns anos depois a criação do Núcleo de Estudos das Produções Autorais Indígenas da UFBA, mais ou menos na mesma época em que uma carta dos indígenas guarani-kaiowá, interpretada como uma ameaça de suicídio em massa, mobilizou o país em 2012.
Tanto por esse começo quanto por entender que as cartas são importantes para compreender a história do país, Costa e Xucuru-Kariri pretendem transformar essas cartas reunidas em novos documentos e formatos acessíveis ao público.
Além de disponibilizá-las no site do projeto, os pesquisadores também querem instalar QR codes nos locais onde essas cartas foram escritas, como na casa onde Paraupaba escreveu o pedido de traslado da família, em Haia, e criar material didático para escolas brasileiras.
“A gente quer que as cartas indígenas sejam consideradas cartas do Brasil também e que elas entrem na formação escolar de qualquer brasileiro, que eles possam ler essas cartas como parte do constituinte da história”, conclui Costa.