A importância cada vez maior da atividade, devido à seca extrema e aos incêndios, contrasta com os riscos da ocupação e a falta de direitos trabalhistas.Às vezes Francisca Eloide, de 46 anos, olha para o fogo e se sente frustrada. O sentimento, no entanto, não a impede de seguir combatendo os incêndios. “E quando volto para casa com o dever cumprido, sinto um conforto por ter feito um trabalho legal, de salvar a floresta, a fauna, os indígenas, os quilombolas, as comunidades”, afirmou a brigadista florestal.

Eloide é voluntária da Brigada de Alter, de Santarém (PA). Neste ano, com a seca histórica e os grandes incêndios, tem atuado arduamente. Em uma de suas últimas missões, no início de setembro, combateu o fogo por dez dias nas terras indígenas de Apiaká-Kayabi, Ytu, Tatuí e Nova Munduruku, em Juara (MT), a dois dias de viagem de sua base.

“Em todos os lugares que a gente passava tinha fumaça. Não tinha para onde correr nas aldeias. Dormia e acordava respirando fumaça. E acabei ficando com o pulmão bem ruim, cansada, rouca e com muita tosse e secreção. Vai levar alguns dias para me recuperar. Mas creio que logo vou ficar bem, pronta para o próximo combate”, contou Eloide.

Os brigadistas estão na linha de frente do combate aos incêndios. Mas ao mesmo tempo em que salvam pessoas, florestas e animais, colocam em risco a própria saúde. E seus atos, muitas vezes heroicos, contrastam com condições de trabalho muitas vezes inadequadas e a falta de direitos trabalhistas no caso daqueles que são contratados temporariamente pelos governos federal, estaduais e municipais.

“É um dever nosso mostrar quem são esses brigadistas, que doam a vida para a proteção dos territórios”, analisou a professora Kelly Polido Kaneshiro Olympio, do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). “São pessoas que não estão sendo vistas nem pela sociedade nem pelo sistema de saúde. E que estão totalmente desamparadas pela previdência”.

Mortes e riscos à saúde

Pelo menos 11 pessoas morreram combatendo o fogo desde agosto, quando recrudesceram os incêndios. Um dos casos mais emblemáticos foi o de Uellinton Lopes, de 39 anos, que trabalhava para o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Ele combatia incêndios na Terra Indígena Capoto/Jarina, no Parque Nacional do Xingu, quando morreu carbonizado. Dias antes, havia exaltado a atividade em suas redes sociais. “Só nós sabemos a luta pelo meio ambiente. A luta dos brigadistas poucos sabem, e só Deus vê tudo”, escreveu.

A morte é um dos riscos da atividade, mas não o único. Segundo a professora Olympio, a atividade pode estar relacionada a doenças cardiovasculares, respiratórias, renais, osteomusculares, além de acidentes como queimaduras, cortes e picadas de animais peçonhentos. A fumaça dos incêndios também é reconhecidamente causadora de câncer.

De acordo com a professora da USP, hoje não é possível saber quais doenças e agravos estão relacionados ao trabalho do brigadista florestal. Embora a atividade esteja reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) desde 2020, não há um código específico para esta profissão no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). “É urgente que tenha um código específico no sistema para a notificação de agravos ocorridos com brigadistas florestais”, afirmou.

O grupo de pesquisa Expossoma e Saúde do Trabalhador (eXsat), coordenado por Olympio, tenta compreender os riscos que o brigadista passa. Após serem procurados pelo Ministério da Saúde, iniciaram uma pesquisa em Santarém, focado na Amazônia. O objetivo é que, no futuro, as informações ajudem a formar políticas públicas.

Quando retornou da missão de Mato Grosso, Eloide não recebeu atendimento médico. Ela acha que seria até mais importante ter um acompanhamento psicológico. “Foi uma situação apocalíptica. Os povos indígenas têm sofrido muito porque não é qualquer fumaça. É como se fosse um nevoeiro constante, que ficam respirando por meses.”

Eloide sente-se realizada com os trabalhos voluntários, que faz há 16 anos. “O maior pagamento é a sensação de voltar para casa com o dever cumprido.”

No entanto, apesar da satisfação pessoal relatada por muitos voluntários, a ideia de tornar a atividade uma profissão regulamentada ganha força, seja para garantir direitos aos trabalhadores, seja para tornar o combate aos incêndios mais eficiente.

Profissão regulamentada

Neste mês de setembro, que deve representar o recorde de incêndios no ano, foram apresentados dois projetos na Câmara dos Deputados para criar e regulamentar a profissão de brigadista florestal. O deputado Weliton Prado (Solidariedade) e Célia Xakriabá (PSOL), ambos de Minas Gerais, protocolaram sugestões semelhantes.

Na justificativa do projeto, Prado afirmou que o trabalho precisa ser contínuo, com” conscientização, educação e prevenção, não só combate direto aos incêndios.” Xakriabá destacou que “é necessário que os profissionais tenham acesso a assistência médica e psicológica, bem como a um seguro de vida que os ampare em casos de incidentes ou acidentes.”

O presidente do Sindicato dos Bombeiros Civis do Distrito Federal (SindBombeiros), Felipe Araújo, disse ver “com bons olhos” as propostas. Ressalta, no entanto, a falta de temas específicos, como escala de trabalho, tempo de descanso e adicional de periculosidade, benefício pago às profissões perigosas. E alerta que as propostas podem demorar para ser aprovada. “O nosso projeto demorou 28 anos para virar lei”.

Araújo se refere à lei 11.901, de 2019, que regulamentou a profissão do bombeiro civil. “Nós temos usado essa lei para dialogar com alguns órgãos que contratam brigadistas florestais”, disse. Segundo ele, o Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Distrito Federal (Ibram) passou a pagar uma porcentagem de periculosidade após negociação com o SindBombeiros.

Também houve conversas com o Ibama em busca de direitos dos trabalhadores. Mas, embora a autarquia tenha se mostrado receptiva, as conversas não avançaram devido ao foco nos incêndios.

O Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que juntos contratam de forma temporária mais de três mil brigadistas, não responderam ao pedido de entrevistas para tratar dos assuntos relacionados à profissão.

Davi Ferreira, 35 anos, chefe de brigada contratado pelo Ibram, de Brasília, destaca que uma das dificuldades é a necessidade de passar por sucessivos processos seletivos – ele já foi aprovado em oito. “É frustrante. Não existe segurança trabalhista nenhuma. Não somos nem celetista e nem servidor público”. De acordo com o trabalhador, que também é bombeiro civil, a importância da ocupação justifica sua atuação.

Prevenção ficou prejudicada

O indígena Cleber Oliveira Martins Javaé, de 36 anos, é chefe de brigada na Ilha do Bananal, em Tocantins. Começou a atuar em 2013, no primeiro ano em que o Ibama criou as brigas indígenas. “Foi muito desafiador porque não tínhamos muitos recursos. Hoje temos mais tecnologia, como mapas e sistemas de navegação, que facilitam bastante a orientação.”

Como o trabalho é temporário, Javaé teve outras ocupações até retornar neste ano à atividade. “Tenho uma paixão muito grande pela manutenção dos territórios e da flora. Não só de combater o fogo e prevenir, mas salvar animais, monitorar os lagos”. A função de brigadista no Ibama dá direito a um salário mínimo, adicional de insalubridade, auxílio transporte e auxílio pré-escolar. Chefes de esquadrão e de brigada recebem mais.

Como os contratos são temporários, Javaé disse que muitos brigadistas experientes deixam a função. O indígena ressalta ainda que o trabalho de prevenção fica prejudicado. “Foi um ano atípico, com muitos incêndios. Assim que fomos contratados, em junho, iniciaram os incêndios. Não tivemos tempo de fazer a parte de conscientização, da educação ambiental, da prevenção.”

A situação que mais marcou Javaé mostra a importância dos brigadistas florestais não só para combater o fogo, mas para salvar os animais. Eles encontraram o Lago do Bananal praticamente vazio, com a pouca água misturada com lama. “Era uma cena de morte. Vários peixes, principalmente pirarucus, tentando sobreviver. O lago nunca tinha secado.” A brigada então agiu.

Usaram lonas para forrar as caçambas das caminhonetes do Ibama, enchendo-as de água, como se fossem piscinas. Os brigadistas entraram no lago enlameado, cheio de jacarés, para pegar os peixes com as mãos, principalmente filhotes de pirarucus, levá-los até os veículos e transportá-los até um rio.

Quando terminou de contar a história, Javaé desculpou-se pela voz rouca. “Estou com dor de garganta.”