Os dois institutos que estão hoje no epicentro da produção nacional de vacinas nasceram em um mesmo contexto de urbanização e imigração crescentes no início do século 20.Já fazia alguns meses que o medo da peste bubônica assombrava o Brasil, sobretudo por conta de relatos vindos de Portugal, que enfrentava a epidemia naquele ano de 1899. Em 18 de outubro oficialmente foi reconhecido que a doença já se alastrava em Santos, chegada via algum navio europeu. Autoridades ficaram alarmadas. Importar o chamado soro antipestoso era difícil, não só pela logística, mas também pelo fato de que os estoques eram baixos.

“Houve então uma grande preocupação tanto do governo paulista quanto do governo federal. Neste contexto, foram criados tanto o [hoje Instituto] Butantan como o Instituto Soroterápico Federal [hoje Fundação Oswaldo Cruz]. A agenda inicial de ambas as instituições foi a fabricação de soro antipestoso”, explica a historiadora Gisele Porto Sanglard, pesquisadora e professora na Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A maior preocupação era o controle das epidemias, em um contexto de urbanização e imigração crescentes, aponta a pesquisadora Monica Musatti Cytrynowicz, autora do livro Do Lazareto dos Variolosos ao Instituto de Infectologia Emilio Ribas: 130 anos de História da Saúde Pública no Brasil.

O contexto histórico favorecia a propagação de doenças. “Os fluxos migratórios vindos de regiões empobrecidas da Europa, muitas vezes em embarcações com condições de higiene degradantes, acabaram por contribuir para a proliferação de doenças nas capitais brasileiras”, comenta o historiador Ricardo Cabral de Freitas, pesquisador na Fundação Oswaldo Cruz.

Ainda em 1899, o governo paulista adquiriu terras então distantes do centro da cidade, na Fazenda Butantan, na zona oeste, para que lá fosse instalado um laboratório destinado a produzir o soro antipestoso. Era então vinculado ao Instituto Bacteriológico — hoje Adolpho Lutz. O laboratório foi reconhecido como instituição autônoma há exatos 120 anos, em fevereiro de 1901, quando ganhou o nome de Instituto Serumtherápico, sendo mais tarde rebatizado de Instituto Butantan.

“No final do século 19, o Instituto Pasteur de Paris era o único produtor de soro antipestoso. A falta de soro e as dificuldades para sua rápida importação foram os motivos que levaram o diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, [o sanitarista] Emílio Ribas [(1862-1925)], a propor ao governo do estado a criação de uma instituição voltada à produção de soro contra a peste bubônica”, explica a pesquisadora Cytrynowicz. Quem ficou encarregado de comandar os trabalhos no laboratório que deu origem ao Butantan foi o médico Vital Brazil Mineiro da Campanha (1865-1950).

Já a Fundação Oswaldo Cruz, iniciativa do governo federal, nasceu em maio de 1900 com a criação do Instituto Soroterápico Federal em terras também então afastadas do ambiente urbano, na Fazenda de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro.

“Reza a lenda que o governo federal tentou comprar soro antipestoso em Paris e a resposta foi Instituto Pasteur foi que não havia necessidade, já que o Brasil tinha um médico altamente capaz de desenvolver o soro aqui”, diz Sanglard.

Era o epidemiologista e sanitarista Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917), que havia acabado de retornar de uma temporada de três anos no próprio Pasteur. Ele foi incumbido de coordenar os esforços da instituição federal, depois rebatizada com seu nome.

Pioneirismo

Nascidos quase ao mesmo tempo, o Butantan e s Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) acabaram sendo as pioneiras nos trabalhos de microbiologia no Brasil. “Elas marcam o domínio do chamado pasteurianismo e da ciência experimental no Brasil”, comenta Sanglard.

A historiadora atenta que a partir desse trabalho inicial, as instituição passaram a adotar uma “agenda de pesquisa” diretamente relacionada à saúde pública brasileira. “Como a grande questão intelectual de Vital Brazil foi o ofidismo, [o Butantan] desenvolveu uma expertise e se consolidou como uma instituição de fabricação de soro [contra venenos de serpente, aranhas, escorpiões e outros animais]”, aponta.

No Rio, as ações acabaram seguindo a trajetória imposta pelo primeiro diretor geral da atual Fiocruz, o médico barão de Pedro Afonso (1845-1920). “Antes, ele já trabalhava com a questão das vacinas [antivaríola], então sua preocupação era a distribuição delas. Dois anos depois, quando Afonso saiu e Oswaldo Cruz se tornou diretor geral, o instituto adquiriu a tríade do Pasteur, ou seja, estabelecendo-se como local de ensino, pesquisa e produção.”

Um dos trabalhos liderados pelos cientistas da instituição foi a reforma sanitária colocada em prática na capital federal, com um programa de vacinação em massa — e cuja reação popular seria conhecida como Revolta da Vacina, em 1904.

A atuação de Oswaldo Cruz acabou reconhecido internacionalmente. Foi premiado, em 1907, no Congresso Internacional de Higiene e Demografia, ocorrido em Berlim.

“O instituto [hoje Fiocruz] foi contratado para realizar diversas expedições ao interior do Brasil, e estas foram fundamentais para mapear a situação [epidemiológica]. A descoberta da doença de Chagas ocorreu em uma dessas viagens, em 1909”, relata a historiadora. O biólogo e médico sanitarista Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas (1879-1934) identificou os barbeiros como transmissores e enviou os insetos para análises no laboratório no Rio.

De soros a vacinas

Em São Paulo, o Butantan também assumiu o protagonismo nas políticas sanitárias. Entre 1906 e 1907, o instituto começou a produzir soro antidiftérico e a tuberculina, substância empregada no diagnóstico da tuberculose humana.

A partir de 1914, o instituto pôde ampliar a linha de produtos e serviços. Realizava serviços em difteria e pestes, exames histopatológicos e estudos sobre tétano e tuberculose, produzindo soro antitetânico, soro antidiftérico, soro antipestoso, tuberculina e maleína para diagnóstico, aponta Cytrynowicz.

“Dentre as vacinas, produzia a antiestreptocócica e a antiestafilocócica, além de soluções medicamentosas. Em 1920, uma nova vacina para a prevenção da tuberculose começou a ser preparada, a BCG, e a vacina contra a febre tifoide passou a ser produzida em larga escala”, comenta a pesquisadora.

Nos anos 1920, o Butantan passou a ser responsável por fiscalizar todos os produtos biológicos produzidos e comercializados em São Paulo. Em 1948, um novo pavilhão foi inaugurado, com produção de insumos para hospitais paulistas. “Produzia produtos mais puros que os similares estrangeiros e com menor custo, aproveitando matéria-prima nacional”, relata a pesquisadora.

A expertise dos soros antiofídicos também foi mantida. Conforme conta Cytrynowicz, o Butantan criou “uma eficiente rede de distribuição” desse produto, “em colaboração com agricultores, fazendeiros, colonos, professores e autoridades do interior”.

“Eles levavam informação e material, ensinavam como capturar de forma segura as serpentes, forneciam material de captura e caixas para envio, e pagavam o transporte até o instituto”, contextualiza. “Em troca, e como forma de ‘pagamento' pelas serpentes recebidas, o Butantan enviava a esses ‘parceiros' os soros produzidos, juntamente com o equipamento necessário para utilizá-lo, como seringas e agulhas.”

Ao longo do século 20, tanto o Butantan quanto a Fiocruz se consolidaram na estrutura de saúde pública brasileira.

Sucessos recentes

A Fundação Oswaldo Cruz recebeu, em 2006, o Prêmio Mundial de Excelência em Saúde Pública — atribuído pela Federação Mundial de Associações de Saúde Pública. Na última década, cientistas da entidade se debruçaram sobre epidemias brasileiras, como as arboviroses. Foi em seus laboratórios que foi identificado o vírus zika em dois casos de microcefalia, em 2015, e também se isolou o vírus da chikungunya — o que possibilitou a diferenciação no diagnóstico entre dengue, zika e chikungunya.

O Butantan, que completa 120 anos nesta terça (23/02), se tornou o principal produto de imunobiológicos do Brasil — boa parte das vacinas do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde sai de suas dependências. De forma constante, o instituto produz 12 tipos de soro e sete vacinas — entre elas, influenza, H1N1, HPV e hepatites A e B.

Com a atual pandemia do coronavírus, essas duas instituições — que nasceram para combater a peste bubônica — novamente encontraram um inimigo comum. E, ainda ao longo do ano passado, firmaram acordos internacionais que possibilitaram que hoje elas sejam os dois polos que devem garantir a produção nacional de imunizantes contra a doença.

No caso paulista, graças a uma parceria com a empresa chinesa Sinovac, desenvolvedora da vacina Coronavac. A Fundação Oswaldo Cruz, por sua vez, é a incumbida de produzir, no Brasil, a vacina de Oxford/AstraZeneca.