01/01/2012 - 0:00
O Estado de Indiana, nos Estados Unidos, adotou, em julho, o Common Core State Standard, uma iniciativa de padronização do ensino básico que torna o ensino da letra cursiva opcional, passível de ser abolido futuramente. Para os defensores do padrão, a letra de forma deve receber prioridade no ensino, uma vez que as crianças utilizam cada vez mais computadores. Também é mais fácil para o jovem associar os símbolos das teclas às letras do que desenhar a palavra. A decisão trouxe novamente à tona a discussão sobre o desaparecimento da letra de mão.
“Quando inventaram a máquina de escrever, também foi dito que ela acabaria com a escrita. Ao contrário, o que acabou foi a máquina de escrever”, argumenta Antonio De Franco Neto, professor, há 45 anos, da Escola de Caligrafia De Franco. Para Franco, o computador surgiu para auxiliar e não substituir, pois escrever à mão, fazendo anotações em um papel, ainda é muito mais prático.
O professor encara a medida adotada nos Estados Unidos como um erro. “Todo mundo sabe escrever em Indiana. Mas, daqui a duas gerações, na hora em que acabar a luz, as pessoas não vão conseguir fazer sequer a letra ‘o’. As invenções tecnológicas não foram feitas para diminuir a capacidade humana e sim para acrescentar. Quando se substitui escrever à mão por teclar, perdemos a capacidade intelectual e produtiva”, argumenta.
Em contrapartida, Marcelo E. K. Buzato, coordenador do projeto Letramento, Fronteiras e Cultura Digital, do Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade de Campinas, vê a medida norte-americana como natural, embora complicada. “Acho que não se deve encarar essa decisão como o ‘começo do fim da escrita cursiva’, porque se trata, por enquanto, da abolição da obrigatoriedade, e não da tecnologia em si.” Nesse sentido, é mais provável que haja a migração para outros suportes de escrita, como celulares e tablets, em que há recursos para reconhecer esse tipo de letra.
Beleza e clareza
Em 2005, Steve Jobs, cofundador da Apple, fez um discurso na Universidade Stanford no qual contou que frequentara um curso de caligrafia quando estudante em Reed College. O Macintosh não seria o mesmo sem a noção de estética aprendida naquelas aulas. O computador da Apple é conhecido por seu design inconfundível e por ser o primeiro a adotar belas tipografias. A professora Diana Vidal, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, assinala que a boa caligrafia contribui para formar o senso estético da criança. O ensino da técnica de escrever proporciona hábitos de ordem, asseio e disciplina mental.
Letra “bonita” significa letra clara, uniforme e legível. Segundo De Franco, quem estuda caligrafia aprende a se comunicar melhor e torna-se mais transparente. “Se você tem uma letra confusa e não sabe se prezado é com s ou z, desenha alguma coisa que possa parecer os dois. Mas, se tem uma letra bem definida, é obrigado a saber escrever certo”, explica. Com foco na legibilidade, muitos dos alunos que procuram a escola de caligrafia são vestibulandos ou querem prestar concurso e provas em que ter boa redação e caligrafia é o diferencial.
Claudemir Belintane, professor de língua portuguesa e alfabetização da Faculdade de Educação da USP, argumenta que o traçado da letra e o manejo rápido contribuem para o fluxo da escrita, mesmo em jovens que misturam a cursiva com a letra de forma. No Brasil, muitas escolas não desenvolvem trabalhos para a criança ter maior domínio motor da escrita corrida. “Isso não tem sido bom, pois o esforço de escrever sem domínio de um fluxo faz com que muitas crianças achem trabalhoso demais escrever um texto longo”, afirma.
Para Belintane, é necessário discutir a falta de ensino de técnicas caligráficas antes de refletir sobre qual tipo de letra é melhor. Se a criança achar que escrever é penoso, isso pode levá-la a não desenvolver raciocínios mais longos por preguiça. “Sinto que o uso do teclado e tela touchscreen vem deteriorando minha habilidade motora. Quando tenho de elaborar um manuscrito mais longo, sinto dificuldade. Mas supero com algum esforço”, relata.
No Japão e no Líbano, a caligrafia é uma prática em extinção, vinculada à arte
Mudança tecnológica
Belintane afirma que não existem dados conclusivos sobre perdas de habilidades ligadas exclusivamente à escrita cursiva. “Essa suposição pressupõe uma concepção enrijecida do cérebro. Se a criança usar tablet, ou mesmo teclado, acredito que, com o tempo, haverá compensações. Outras áreas serão ativadas e novas habilidades surgirão”, explica. Talvez ainda seja cedo demais para dizer o que acontecerá com as habilidades motoras com o possível fim da prática da escrita. Vale lembrar que a caneta e o papel já foram tecnologias novas e que muitas máquinas que usamos hoje em dia facilitam nossa vida sem destituir habilidades. O automóvel não paralisou as pessoas.
Em relação à educação, não é possível concluir sobre facilidades ou dificuldades no aprendizado, uma vez que digitar com fluência, desvinculando o olhar da ação das mãos para o monitor, também exige coordenação motora. Tanto na escrita com lápis quanto no teclado a criança precisará adquirir a necessidade primária de compreender as associações entre grafema e fonema da língua.
“Uma senhora de 56 anos, faxineira, que cursava educação de jovens e adultos, contou que pegava receitas culinárias na internet com a ajuda da patroa e transcrevia em um caderno à mão. Perguntei se era para treinar a escrita e ela contou que queria deixar o caderno de lembrança para suas netas. Disse que não podia comunicar sentimentos com a letra de computador”.
Marcelo Buzato, Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp
A mudança de tecnologia da escrita tem repercussões sociais, culturais e cognitivas. Por exemplo, a afetividade de uma carta manuscrita não pode ser transposta para meio eletrônico. No entanto, Buzato diz que o uso de emoticons tem se tornado símbolo de afetividade entre os usuários eletrônicos. A caligrafia, por outro lado, está cada vez mais vinculada à arte, como em convites de eventos. No Japão, pouco se ensina escrever as letras do alfabeto ocidental com lápis e papel. No ensino de línguas estrangeiras, prevalece o computador. No Líbano, os calígrafos do alfabeto árabe também são raros.
No Brasil, a alfabetização ainda se dá com lápis e papel, embora não exista treino motor para promover uma caligrafia clara como havia no século passado. Ainda assim, Buzato nota que muitos jovens têm retomado a escrita cursiva para enviar cartas em papel pelo correio e manter diários em cadernos e scrapbooks. A escrita cursiva também migra de suporte. Tablets e celulares reconhecem a escrita à mão e muitos tatuam manuscritos. “Acho mais fácil esse tipo de escrita se deslocar e se reespecializar em outros espaços do que sumir”, reflete Buzato.