Um quinto da Europa já enfrenta estresse hídrico todos os anos. Continente deve dobrar a demanda por água até 2050, causando crise que terá impacto na indústria, agricultura, cotidiano e ecossistemas.A Europa está em alerta devido a uma onda de calor que atinge vários países do continente. As altas temperaturas somadas à seca que atinge algumas regiões aumentam o risco de incêndios florestais. Com as mudanças climáticas, o cenário deve se tornar mais intenso e frequente nos próximos anos.

O calor extremo e os períodos prolongados de seca, antes raros na Europa, já se tornam um problema anual em muitas regiões. A escassez de água é uma realidade, por exemplo em Malta.

A ilha no Mediterrâneo, localizada entre a Itália e o Norte da África, não possui lagos ou rios e não recebe muitas chuvas. Com um clima quente e seco e uma população de 563 mil habitantes – número que se multiplica por seis devido ao turismo — cada gota conta.

“Vivemos desde sempre sem água suficiente”, afirmou o biólogo marinho Thomas Bajada, em seu primeiro mandato como membro do Parlamento Europeu. A escassez, segundo ele, obrigou seu país a inovar.

Atualmente, cerca de dois terços da água potável de Malta vêm do mar – água dessalinizada misturada com um suprimento mínimo de água subterrânea. O investimento em outras soluções técnicas como hidrômetros inteligentes, gerenciamento de vazamentos e reutilização de águas residuais também ajuda a evitar que as torneiras sequem. Pelo menos por enquanto.

Um quinto da Europa sob estresse hídrico

Mesmo assim, os desafios hídricos de Malta devem crescer com o aumento das temperaturas e a instabilidade dos padrões do clima devido às mudanças climáticas. Com muitas cidades e regiões europeias ainda dependendo de práticas ultrapassadas de gestão dos recursos hídricos, a Agência Europeia do Ambiente (AEA) estima que um quinto do continente já enfrenta estresse hídrico todos os anos.

Segundo o órgão, a Europa deve dobrar a demanda por água até 2050, o que pode gerar uma grave escassez no futuro. “A Europa está na vanguarda de uma crescente crise hídrica que ameaça a indústria, a agricultura, os ecossistemas e o acesso dos cidadãos à água”, disse Loic Charpentier, diretor jurídico da Water Europe, uma organização que promove a tecnologia hídrica.

Em 2024, várias ondas de calor quebraram recordes de temperatura na região, com a Europa Central e Oriental e a região do Mediterrâneo sofrendo cada vez mais com o estresse térmico e a redução das reservas de água, segundo dados do Serviço para a Mudança Climática Copernicus (CCCS) da Comissão Europeia.

A primeira Avaliação Europeia de Riscos Climáticos, divulgada pela AEA em março de 2024, destacou que esses novos extremos climáticos já afetavam gravemente os ecossistemas, a agricultura, a atividade econômica, a saúde humana e o abastecimento de água.

Escassez de água gera novos conflitos

“Ninguém está vendo o que está vindo quando falamos de água, tanto em relação à poluição quanto à escassez”, disse Athenais Georges, do grupo de defesa Movimento Europeu pela Água. “Trata-se de uma enorme questão ambiental e de justiça social, porque se há escassez de água, há o surgimento de conflitos. Já vimos isso em outras regiões do mundo.”

Em 2012, o Movimento Europeu pela Água liderou a campanha Right2Water, assinada por mais de 1,6 milhão de cidadãos da União Europeia (EU), que instou a Comissão Europeia a assegurar que esse recurso continue a ser um serviço público e a “garantir que todos os habitantes usufruam do direito à água”.

A Diretriz da Água Potável, a principal lei da UE sobre o tema, passou por uma revisão após a campanha e entrou em vigor em 2021. Ela obriga os Estados-membros do bloco a melhorar o acesso à água potável a todos os cidadãos. No entanto, dados da AEA mostram que cerca de 30% dos cidadãos da UE ainda sofrem com a escassez de água todos os anos.

Nova estratégia hídrica da UE

A Comissão Europeia apresentou início de junho a Estratégia Europeia de Resiliência Hídrica, voltada a garantir o acesso a água limpa e a um preço acessível a todos. A iniciativa busca restaurar e proteger o ciclo da água das nascentes até ao mar, prevenir e combater a poluição nesse recurso, reduzir o consumo e o desperdício, modernizar a infraestrutura, além de apoiar políticas sólidas de tarifação da água.

“Queremos abordar as causas fundamentais dos desafios hídricos, incluindo poluição, escassez e o impacto das mudanças climáticas”, disse Jessika Roswall, comissária da UE para o Meio Ambiente e Resiliência Hídrica, em discurso no Parlamento Europeu no início de maio. Ela também destacou os planos para “promover a vantagem competitiva do nosso setor hídrico da UE”.

“A seca e a adaptação climática são apenas parte de um quebra-cabeça maior”, disse Charpentier da Water Europe, enfatizando a necessidade de desenvolver novas infraestruturas e expandir a digitalização. “A Europa deve estimular investimentos em todos os setores, desde cidadãos e empresas até autoridades locais e regionais.”

Restaurar a água “devolvendo espaço à natureza”

Os ambientalistas, no entanto, estão decepcionados com o que avaliam como esforços bem-sucedidos de legisladores conservadores e de extrema direita para diluir o papel das soluções baseadas na natureza. Segundo dizem, isso estabeleceu um “precedente preocupante” antes da divulgação da estratégia da Comissão. Eles criticaram a ação que visa enfraquecer as metas de restauração e conservação da natureza, assim como as medidas para combater a poluição da água.

“Não podemos lidar com um continente cada vez mais esgotado de água limpa ou reparar ciclos hídricos rompidos sem trabalhar lado a lado com a natureza”, afirmou a coalizão de ONGs Living Rivers Europe em comunicado. “Soluções baseadas na natureza, como a restauração de áreas úmidas e a remoção de barreiras que obstruem os rios, são muito mais econômicas, diretas e ambientalmente sustentáveis do que infraestruturas cinzentas e reparos tecnológicos.”

“Não se pode cumprir objetivos ambientais, sociais e éticos quando se busca o lucro”, observou Georges, do Movimento Europeu pela Água, que faz campanha contra a privatização dos serviços hídricos. Ela disse à DW que novas infraestruturas modernas, como usinas de dessalinização e barragens, exigem muita energia para serem construídas e para funcionar, e geram altos custos de manutenção.

Georges argumenta que uma abordagem que ajudasse a reter mais água no solo e a repor as reservas subterrâneas esgotadas – por exemplo, usando superfícies permeáveis nas cidades ou dando mais espaço para rios e córregos – seria mais sustentável a longo prazo. “Se analisarmos os dois tipos de soluções, qual é mais fácil, qual é a mais econômica?”, indagou. “É simplesmente devolver espaço à natureza.”