Deserto chileno se tornou o maior depósito de lixo têxtil do mundo. Projeto de ONGs com plataforma brasileira distribui vestimentas descartadas através de loja online, cobrando só pelo envio.Todos os anos, o deserto do Atacama, no Chile, recebe cerca de 40 mil toneladas de roupas das chamadas marcas de fast fashion, principalmente dos Estados Unidos e da Europa. Para acabar com isso, foi lançada a campanha Atacama RE-commerce, que busca dar uma segunda chance às roupas descartadas e abandonadas no deserto, resgatando-as para que, depois de selecionadas, limpas e restauradas, acabem finalmente em um guarda-roupa.

Tudo isso por meio de uma loja de comércio eletrônico em que as peças não têm preço, pois o único pagamento feito pelo usuário é o frete, ou seja, sua retirada do deserto.

Essa iniciativa é uma ação conjunta de várias empresas e organizações, incluindo a ONG Desierto Vestido, uma organização chilena sem fins lucrativos dedicada a educar, conscientizar e promover a economia circular no setor têxtil.

“Trabalhamos no território há cinco anos e, embora houvesse um grupo de vizinhos que denunciou o problema, não houve resposta”, diz Jean Karla Zambrana Avilés, uma das cofundadoras da organização. “Havia também uma empresa privada que tentou cuidar do problema, mas havia mais dejetos do que eles podiam gerenciar”, lamenta.

Apesar disso, o trabalho para tornar o problema visível repercutiu na mídia, ajudando a aumentar a conscientização sobre a situação, ultrapassando fronteiras. “Quando vimos as imagens daquele mar de roupas descartadas, entendemos que não se tratava apenas de um problema ambiental, mas de um símbolo extremo da crise do fast fashion”, afirma Pedro Maneschy, diretor de criação da Artplan, agência de comunicação brasileira que criou a campanha.

Chamado para a carteira e para a cabeça

“A iniciativa foi concebida como uma ponte entre a superprodução e o consumo consciente, buscando transformar a percepção das roupas descartadas em recursos valiosos por meio da reutilização e de uma segunda vida”, ressalta Zambrana.

Assim, foi criada uma loja online que usa o próprio sistema que gera o problema, ou seja, o comércio, para ajudar a resolvê-lo. “É uma ideia simples e poderosa, capaz de transformar o ato comum de fazer compras online em uma forma de ativismo ambiental. Cada compra feita limpa o deserto, envolve o consumidor e desafia os excessos da indústria da moda”, diz Maneschy.

“Acreditamos que cada peça tem uma história e um propósito. Nossa missão é resgatar esses itens e dar a eles uma nova oportunidade, promovendo um processo de conscientização sobre o consumismo exacerbado promovido pela indústria da moda atualmente”, acrescenta Mariano Gomide de Faria, CEO da Vtex, empresa brasileira responsável pela plataforma digital do projeto.

A cofundadora do Desierto Vestido destaca o componente colaborativo e a troca de conhecimentos no âmbito da iniciativa, na qual “nossos aliados foram nossos guias e professores e nos ensinaram muito sobre a criação de projetos e nós sobre os problemas do fast fashion e as consequências do setor”.

Nesse sentido, a entidade chilena esteve envolvida em todo o processo, desde a busca, a restauração e o reparo das peças de vestuário até a criação e o registro da mensagem da campanha. “Queríamos deixar uma mensagem que causasse impacto no mundo, e conseguimos”, diz.

Da passarela à loja

Esta é a segunda campanha da entidade chilena com a empresa brasileira, cuja colaboração começou há algum tempo. “Todos os anos escolhemos entidades para trabalhar em projetos de comunicação sem custo, é a nossa forma de exercitar a criatividade em todo o seu potencial, dando visibilidade e apoiando causas relevantes para a sociedade. No final de 2022, por meio do Fashion Revolution Brasil, que é uma entidade global que trabalha pelo ativismo da moda sustentável em todo o mundo, conhecemos o Desierto Vestido e decidimos fazer o primeiro projeto de comunicação com eles em 2023: um desfile de moda a céu aberto com looks feitos a partir de peças recolhidas do aterro sanitário”, lembra Paula Lagrotta, chefe de estratégia da Artplan.

Chamado de Atacama Fashion Week e simulando uma “Semana da Moda” profissional, esse foi o germe da próxima campanha deste ano.

“Nos chamou muito a atenção o fato de que as pessoas comuns, os consumidores, no dia a dia, ficavam bastante curiosos e impressionados com o fato de que peças novas, ainda com a etiqueta original, podem estar no meio da areia do deserto e não serem usadas por ninguém, e foi aí que nasceu a ideia para o ano seguinte”, lembra, ressaltando que a ideia é “fazer com que as pessoas participem desse absurdo usando a mesma lógica da moda, que é gerar desejo pelas peças”.

O resultado da chamativa campanha fez com que o lançamento da primeira coleção se esgotasse em cinco horas e que mais de 200 mil pessoas se registrassem na expectativa de novos lançamentos. E depois da boa recepção da iniciativa, inicialmente efêmera, está sendo trabalhada uma aliança com a Universidade do Chile para desenvolver um modelo de longo prazo. “A ideia é gerar renda local, substituir o trabalho voluntário por empregos e aumentar o impacto ambiental e social do projeto”, diz Maneschy.