01/12/2023 - 14:45
Publicado há exatos 90 anos, clássico de Gilberto Freyre é considerado uma das três obras fundadoras da marcante imagem de um país multirracial e teve o mérito de superar as teorias racistas vigentes no começo século 20.Em texto publicado em 1967, o sociólogo, crítico literário e professor universitário Antonio Candido (1918-2017) situou Casa-Grande & Senzala como uma das três obras renovadoras da análise social brasileira. O clássico livro do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), publicado há exatos 90 anos, teve o grande mérito de superar as teorias racistas vigentes entre o fim do século 19 e o começo do 20 — que, apontando para a formação étnica diversa do povo brasileiro, condenavam o país ao fracasso.
Essa criação da identidade nacional, que segue na base de estudos contemporâneos, foi completada com as as publicações de Raízes do Brasil, em 1936, do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), e Formação do Brasil Contemporâneo, obra lançada em 1942 pelo historiador e sociólogo Caio Prado Júnior (1907-1990).
“Casa-Grande & Senzala se tornou um livro importante na cultura brasileira porque foi capaz de oferecer, de maneira sintética, uma autoimagem bastante positiva do povo brasileiro. Até então, a elite intelectual alimentava sérias dúvidas sobre a viabilidade civilizacional do país, em parte por conta da demografia miscigenada do país”, pontua o sociólogo Alfredo Cesar Melo, professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do grupo de estudos pós-coloniais Kaliban, na mesma instituição.
O professor lembra que, antes de Freyre, o escritor e jornalista Euclides da Cunha (1866-1909), em sua obra Os Sertões, “condenava a mistura entre raças”. “Casa-Grande & Senzala não apenas retira os estigmas da miscigenação, mas transforma o hibridismo cultural e racial como pedra angular da nacionalidade, fator fundamental para a projeção internacional do país”, afirma Melo.
Freyre parte da própria arquitetura da casa-grande colonial para mostrar como se desenvolveu a organização social e política brasileira, com destaque para o patriarcalismo — já que o latifundiário colonial era “dono” de tudo o que estivesse sobre suas terras: mulher, filhos, parentes agregados, escravos, amantes e até a estrutura política e religiosa que servisse aquele território.
Quanto à formação racial, o sociólogo rebate a ideia de que a miscigenação causaria uma raça inferior, apontando elementos positivos da mistura cultural na formação brasileira. Melo diz que o livro “ajudou a inventar uma imagem de Brasil, a ponto de se tornar bastante difusa no senso comum brasileiro”. “Mais do que compreender [o país], criou categorias de compreensão do imaginário brasileiro”, explica o professor.
Identidade nacional
“[A obra] tentou reconciliar o Brasil com sua história de violência colonial, mostrando que os legados coloniais são mais ambivalentes. Para usar uma metáfora de Freyre, argumento que há 'ostras que dão pérolas', isto é, a escravidão cruenta e desumana acabou por gerar uma cultura dinâmica, robusta e heterogênea”, diz Melo.
“É a primeira grande obra de cunho científico das ciências humanas que situa o povo brasileiro, antes amaldiçoado pelas teorias evolucionistas, como uma nação com características específicas”, resume o sociólogo Tiago Pereira Andrade, especialista em antropologia e professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Ele explica que, naquela época, o Brasil “tinha a necessidade de um movimento de integração”. E Freyre, que havia estudado na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, estrava sob influência do culturalismo — do antropólogo Franz Boas (1858-1942) —, que rompia com a teoria social evolucionista que dizia que uma cultura era mais civilizada do que a outra.
É um livro que precisa ser lido sob este prisma: lembrando das preocupações daquele momento histórico. “Nas décadas de 1920 a 1940, os intelectuais brasileiros estavam às voltas com o tema da identidade nacional e da recriação institucional”, comenta o sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Era uma época de agitação cultural e política, na qual se buscava reinventar a nação e forjar um povo para o moderno estado que se visava a edificar.”
Nesse sentido, explica Mendes, o pensamento “herdado do Império, que havia gerado uma espécie de cultura decorativa, ignorando a realidade brasileira, o horror da escravidão e o atraso econômico e social”, havia fica para trás.
O livro faz “uma arqueologia da sociedade brasileira a partir da relação íntima entre dois contrários, o senhor branco europeu e o escravo negro africano”, conforme diz o professor. “Ambos, estrangeiros no ‘novo mundo', participando da história da construção dos modernos estados e da economia capitalista desde a colônia, à parte e não o centro, que estava situado na Europa”, contextualiza.
Assim, Freyre situa este mundo lusitano tropical “na lonjura das distâncias, a partir do sentimento de isolamento e de solidão proporcionado pela organização social e econômicas da colônia”, afirma Mendes. “A vida sexual do patriarcado, os momentos de aproximação e de distanciamento em relação ao escravo negro, a alimentação, a formação da mentalidade sob o catolicismo ibérico, nada lhe escapou”, comenta.
“O resultado foi uma obra marcada por dualismos, por contradições, assim como a sociedade brasileira: revolucionária e conservadora”, acrescenta Mendes. “Um exemplo é o mito da democracia racial, a aproximação dos contrários, fruto do contato sexual entre o senhor branco e a escrava negra. Por um lado, a distância é quebrada e dois humanos se encontram em contato íntimo. Por outro, o resultado do contato é sempre um novo escravo que repõe a distância e a dominação.”
Legado contemporâneo
Obviamente que, nos dias contemporâneos, há muito espaço para críticas a esse pensamento inaugurado por Freyre. “Os conceitos e a forma como as ideias são construídas, hoje, são tratados como polêmicos por muita gente. Mas não podemos ser levianos e tratar com anacronismo os valores e as épocas”, destaca Andrade. “Por vezes, a obra é acusada de amortecer a violência com a qual os negros e indígenas eram tratados, e acaba sendo cancelada.”
“De fato, com os valores contemporâneos, não tem como ter outra percepção. Mas se considerada a época, é uma obra um tanto quanto libertadora, pois aclamava os negros e indígenas como agentes e protagonistas na formação da cultura brasileira”, prossegue o professor. “Falem bem ou falem mal, o livro serve como um ponto de partida para as falas do que é o Brasil hoje.”
“Deve ser um livro de cabeceira para quem estuda a história do Brasil ou a cultura brasileira”, complementa. “Ele centraliza o entendimento de como funciona a nossa sociabilidade principalmente pelas formas de convivência entre as etnias, as relações de trabalho, e como as famílias foram formadas. É ainda muito útil no mundo contemporâneo, e sempre será para quem quiser entender o Brasil.”
Entre ideias de atualidade e obsolescência do trabalho de Freyre, o sociólogo Melo ressalta que Casa-Grande & Senzala “impacta o imaginário do país” pelo fato de ter inaugurado “uma maneira do brasileiro se autoimaginar”. “E que, inclusive, tem forte ressonância no soft power do Brasil na sua interação com o mundo: um país alegre, festeiro, hospitaleiro, informal, tolerante, diplomático por natureza, etc.”, afirma.