Os estupros em massa sofridos por Gisèle Pélicot mostram que os estupradores não têm cara. Eles podem ser aquele seu vizinho, seu amigo, o padeiro da esquina ou até mesmo o seu marido.Dominique Pélicot sempre pareceu ser um senhor do bem e pacato. Ele era apenas mais um aposentado, marido, pai e avô, levando uma vida calma em uma vila medieval de 6 mil habitantes no distrito de Avignon, no sul da França. Só que não era bem assim.

Dominique, sabemos hoje, é um dos criminosos sexuais mais cruéis dos últimos tempos. Por quase dez anos, ele dopou sua agora ex-mulher, Gisèle Pélicot, hoje com 71 anos, e a ofereceu como um pedaço de carne para que homens a estuprassem na sua frente. Muitos dos estupros foram filmados por ele e os vídeos guardados em uma pasta em seu computador chamada “abuso”. Sim, ele é um abusador. E sempre soube disso.

O julgamento de Dominique e mais 49 homens (sem contar um que está foragido) suspeitos de terem estuprado ou abusado de Gisèle começou no início de setembro e só deve acabar em dezembro. Os detalhes sórdidos desta violência contra Gisèle chocam o mundo todo.

Dominique tem sido chamado pela imprensa sensacionalista de “O Monstro de Avignon”. Faz sentido. Seu comportamento é monstruoso mesmo. Só que Dominique não é um monstro. Ele é um ser humano, mais precisamente, um homem.

Nunca concordei com a máxima de que “homem é tudo igual” e acho bem complicada a frase que diz que “todo homem é um abusador em potencial”. Mas se tem uma coisa que a série de estupros sofridos por Giséle Pélicot nos mostra é que os abusadores não têm cara. Eles podem ser qualquer um: aquele seu vizinho, seu amigo, o padeiro da esquina ou até mesmo o seu marido. Sim, é assustador pensar assim. Mas é isso que a história nos mostra.

Relação sexual sem consentimento é crime

Durante o julgamento, Dominique assumiu ser um estuprador e disse que todos os homens que estupraram sua mulher sabiam que ela estava dopada, coisa que muitos negam. Ele procurava homens para estuprar a mulher na internet, principalmente em um site de encontros chamado Coco.fr e no fórum “Without her knowing” (sem seu conhecimento, em português). Só o nome do fórum já mostra que os homens sabiam muito bem o que estavam fazendo. Sexo sem que uma mulher saiba (ou seja, dopada, dormindo, doente) é estupro. Simples assim.

Só que a maioria dos acusados parece não entender que eles cometeram um crime. Resumindo: eles não negam que tenham tido relações com Gisèle adormecida. Mas, mesmo assim, eles não entendem que isso é estupro.

Como os homens justificam isso? De acordo com a imprensa francesa, a maioria deles afirma que foram enganados por Dominique, que teria dito que as relações eram “um jogo do casal”.

Mas os vídeos mostram que ela estava, sim, dormindo. Ou seja, eles se defendem dizendo que receberam o consentimento da mulher por meio de… seu marido, como se a mulher fosse uma propriedade do esposo. Tem algo mais machista que isso?

A desculpa de que eles não sabiam que ter relações com uma mulher desacordada configurava estupro por uma questão geracional não cola, já que os agressores de Giséle têm idades que variam entre 26 e 74 anos. As profissões deles também são variadas e mostram que abusadores não têm um perfil específico. Há um jornalista, um enfermeiro, um bombeiro, um funcionário público. Em comum, eles têm o machismo, o crime cometido e a covardia.

Segundo o jornal francês Le Monde, os homens que já foram ouvidos no julgamento (nove deles até sexta-feira) disseram pérolas como: “não foi minha culpa”, e “sim, eu sou uma vítima”. Essa frase, de acordo com o jornal, foi dita sem hesitação por Husamettin D. um vendedor que não negou ter feito sexo com Giséle enquanto ela dormia. Ou seja, ele assumiu um estupro, mas se considera a vítima.

Pacto dos homens

Outro dado chocante: alguns (poucos) dizem que perceberam que havia algo de errado. Mas, mesmo assim, eles não denunciaram o abuso para ninguém. Esse é o caso de Jacques C., de 74 anos, que esteve na casa do casal em 2020. Ele contou que praticou sexo oral na mulher, mas que foi embora depois que ela apareceu agitada. “Quando cruzei o jardim, eu pensei em denunciar. Mas a vida continuou, e no dia seguinte eu acordei muito cedo para trabalhar e foi isso.”

É, para ele, “a vida continuou”. Para Giséle, o pesadelo prosseguiu. Por que se chatear e denunciar outro homem, não é mesmo? O pacto da masculinidade operou forte nesse caso.

É curioso também que o crime em série tenha ocorrido em uma vila de 6 mil habitantes. A maioria dos abusadores, segundo a polícia, é da mesma região onde o casal morava. Que silêncio é esse que pairou por dez anos? Gisele não merecia isso.

No meio de tanta crueldade e covardia, a mulher é a única no caso a nos dar esperanças. Por sua decisão, o caso não é anônimo. Ela mesmo insistiu para que alguns dos vídeos fossem exibidos. Seu único pedido: que seus filhos, que apoiam a mãe o tempo todo, saíssem da sala na hora da exibição. Giséle tem sido tratada pelas mulheres na França como uma heroína. E ela é mesmo.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.