A notícia causou estardalhaço no fim de novembro: pesquisadores norte-americanos e japoneses transformaram células da pele em equivalentes de células-tronco embrionárias humanas, sem recorrer à clonagem ou à produção de embriões. A técnica representaria, assim, um caminho desimpedido nessa que é uma das mais promissoras fronteiras de pesquisa na medicina. Ela não enfrentaria, em princípio, as questões éticas e religiosas em que as outras alternativas se enredam. Tanto é que recebeu apoio praticamente imediato do presidente norte-americano, George W. Bush – interessado no apoio dos cristãos fundamentalistas integrantes de sua base eleitoral – e de outros segmentos religiosos conservadores.

Células-tronco são, numa definição simples, células primitivas, produzidas enquanto o organismo se desenvolve e capazes de originar outros tipos de células. As pesquisas com elas têm animado os cientistas ao redor do mundo pela possibilidade que oferecem de trazer cura para problemas hoje incontornáveis pela medicina, como traumas na medula espinhal, diabetes, derrames ou distúrbios neurológicos e cardíacos.

À maneira de curingas do baralho, elas poderiam ser introduzidas no corpo do paciente para fazer as funções das células e tecidos lesionados (conheça os diferentes tipos de célulastronco no quadro abaixo). Alguns tratamentos experimentais nessa área, como os realizados na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto (SP), têm obtido resultados estimulantes. Mas as pesquisas ainda estão no início, e o que se sobressai por enquanto é a polêmica sobre como conseguir essas células.

Acima, à direita, o engenheiro genético Ian Wilmut, o criador da ovelha Dolly – o clone mais famoso do mundo. Abaixo, Dolly e sua cria. Tudo nessa ovelha clonada funcionava perfeitamente bem. Menos o seu relógio biológico: Dolly envelheceu e morreu muito mais cedo do que seria normal.

A primeira pesquisa envolvendo o uso de células-tronco embrionárias humanas foi divulgada em 1998 pela equipe do professor James Thomson, da Universidade de Wisconsin (Estados Unidos), também responsável pela descoberta de novembro. Dois anos antes, a equipe do cientista britânico Ian Wilmut havia divulgado o nascimento da ovelha Dolly, a primeira clonagem bem-sucedida da história – e um caminho natural para a obtenção de células-tronco.

NÃO DEMOROU para surgir uma feroz oposição a essas linhas de pesquisa, principalmente vinda de segmentos religiosos. A idéia de clones humanos – mesmo que em princípio destinados a finalidades terapêuticas – ainda é fortemente rejeitada e, para muitos, usar embriões em estudos como esses significa liquidar possibilidades de vida.

Não adiantou muito o fato de os cientistas dizerem que usam em seus experimentos embriões descartados em clínicas de fertilização, os quais teriam o lixo como destino certo. Para os opositores da idéia, empregar embriões com essa finalidade é um assassinato e ponto final.

É por isso que a possibilidade de obter células-tronco a partir de células da pele atrai tanto. Em tese, essa alternativa elimina as objeções políticas, religiosas e éticas, além de contornar o risco de rejeição por parte do paciente

OS ESTUDOS a esse respeito divulgados em novembro foram conduzidos, além da equipe de Thomson, por pesquisadores liderados por Shinya Yamanaka, das universidades de Kyoto e San Francisco (Califórnia, Estados Unidos)). Por processos semelhantes, segundo relataram respectivamente nas revistas Science e Cell, os dois grupos induziram células cutâneas a voltar ao estágio de embrionárias e, a partir daí, a se transformar em neurônios e em células cardíacas. As novas estrelas dessa área receberam o nome de células-tronco pluripotentes induzidas, ou iPS.

A chave para o sucesso foi a descoberta, por essas equipes, de que, entre mais de mil genes capazes de reprogramar células, quatro deles, quando combinados, podem “ligar” ou “desligar” funções celulares – o que permite que uma célula adulta se torne uma embrionária. Foi um grande esforço de tentativa e erro: no caso dos japoneses, a proporção foi de uma célula-tronco embrionária obtida para cinco mil células da pele inoculadas, ante uma para dez mil nos experimentos norte-americanos.

O feito foi aclamado como um dos maiores êxitos científicos já conseguidos. Deepak Srivastava, diretor do Instituto Gladstone para Doenças Cardiovasculares, classificou-o como “monumental por sua importância no campo da pesquisa com as célulastronco embrionárias e por seu impacto potencial sobre a capacidade de acelerar as aplicações dessa tecnologia”. Robert Lanza, da empresa norte- americana Advanced Cell Technology, disse que a novidade representa um “Santo Graal” da área. Mas todos reconhecem que há muito ainda a percorrer. Os pesquisadores responsáveis pela descoberta só vêem um aproveitamento mais imediato da nova técnica no estudo de doenças. Sua incorporação a tratamentos médicos levaria no mínimo dez anos.

Os motivos para COMEMORAR são legítimos, no entanto as APLICAÇÕES PRÁTICAS da descoberta somente serão palpáveis no futuro

ALÉM DISSO, a descoberta não representa o descarte definitivo das pesquisas com células-tronco embrionárias. O próprio Thomson declarou que a definição dos quatro genes que permitiram o processo de reprogramação celular nasceu dessas pesquisas. “Ele precisou das embrionárias para ter o efeito de comparação com as células recém-criadas”, ressalta o pesquisador Stevens Kastrup Rehen, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

De outro lado, esses mesmos genes também podem originar tumores. “A capacidade de dividir-se muito rapidamente é importante nas células-tronco embrionárias”, observou a geneticista Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP. “Contudo, dividir-se muito pode ser bastante perigoso em uma célula adulta, pois essa é uma das características de uma célula cancerosa.”

Nesta página, acima, a geneticista Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Abaixo, a pesquisa no campo das células-tronco é promissora também no mundo dos vegetais. Na página ao lado, James Thomson, pioneiro na pesquisa das células-tronco embrionárias humanas.

Outro fator a ser considerado é que, para introduzir os quatro genes nas células da pele, os pesquisadores recorreram a um vírus, cujo comportamento no corpo, ressaltou a geneticista, é um grande ponto de interrogação. “Dependendo de onde ele se inserir – o que pode ser totalmente aleatório –, pode ativar ou silenciar outros genes, com conseqüências totalmente imprevisíveis.”

POR FIM, HÁ UM aspecto ético pouco citado: “Pode ser possível gerar espermatozóides e óvulos de células da pele através de células iPS”, afirma Yamanaka. “Isso pode ajudar pessoas com problemas de fertilidade, mas vai ser essencial ter uma regulamentação sobre a geração e a utilização de células iPS humanas para evitar o mau uso dessa tecnologia.”

Portanto, os motivos para comemorar são legítimos, mas as aplicações práticas da descoberta só serão palpáveis no futuro. Até lá, o uso de células- tronco embrionárias nas pesquisas garantirá ainda muita celeuma e acalorados debates éticos e religiosos.

 

Os curingas e seu poder

São cinco os tipos de células-tronco conhecidos:

Totipotentes – Capazes de produzir todas as células embrionárias e extra-embrionárias (incluindo a placenta e as responsáveis pela implantação do embrião).

Pluripotentes – Capazes de produzir todas os 220 tipos de células encontradas no corpo. Incluem, portanto, as célulastronco embrionárias e as produzidas nos estudos divulgados em novembro.

Multipotentes – Capazes de produzir células de diversas linhagens. É o caso das células-tronco adultas.

Oligopotentes – Capazes de produzir células dentro de uma única linhagem.

Unipotentes – Capazes de produzir apenas um único tipo celular maduro.

Perguntas freqüentes

Onde se localizam as células-tronco?

Elas podem ser encontradas em embriões recém-fecundados criados por fertilização in vitro ou pela introdução do núcleo celular de uma célula adulta em um óvulo cujo núcleo foi retirado (este último caso é o processo de clonagem da ovelha Dolly). Estão presentes também em células germinativas ou órgãos de fetos abortados, células sangüíneas do cordão umbilical no instante do nascimento, em determinados tecidos adultos (por exemplo, a medula óssea) e em células maduras de tecido adulto reprogramadas para se converter em células-tronco, como nos experimentos divulgados em novembro.

Qual é a diferença entre células-tronco embrionárias e células-tronco adultas?

As primeiras são pluripotentes: trata-se de células ainda indiferenciadas de embriões, que podem transformar-se em células específicas de qualquer órgão ou tecido do corpo humano. Já as segundas são multipotentes: constituem células indiferenciadas que já estão em um tecido diferenciado (por exemplo, a medula óssea) e podem renovar-se e diferenciar-se, mas apenas no âmbito das células especializadas existentes no tecido das quais provêm.

Por que se diz que é interessante conservar o cordão umbilical de um recém-nascido?

Porque há nele diversas célulastronco formadoras de todas as células e derivados celulares que circulam no sangue (denominadas hematopoiéticas). Caso seja preciso um transplante de medula óssea, essas células atendem à necessidade da pessoa sem risco de rejeição.

Em quais doenças a terapia com células-tronco pode ajudar?

Há grandes expectativas principalmente em termos de câncer, cegueira, diabete, distrofia muscular, distúrbios renais, doenças auto-imunes, doença de Alzheimer, doença de Parkinson, doenças cardíacas, doenças hepáticas, doenças pulmonares, doenças renais, esclerose lateral amiotrófica, lesões na medula, osteoartrite e osteoporose.

Em quais países se faz pesquisa de ponta com células-tronco?

Japão, Coréia do Sul, China, Brasil, Índia, Cingapura, Estados Unidos, Canadá, Austrália, África do Sul, Grã-Bretanha, Alemanha, Holanda e outros países europeus.