Publicações alarmistas nas redes sociais vêm distorcendo o teor de iniciativas do bloco europeu para defesa e investimentos. Veja o que realmente dizem esses projetos.Duas iniciativas recentes da União Europeia (UE) geraram acalorados debates e controvérsia nas redes sociais que evocaram paralelos com o Brasil dos anos 1990.

Múltiplas publicações alegaram que o bloco estaria planejando “confiscar as poupanças” de cidadãos para impulsionar investimentos em defesa, pouco mais de três décadas após um programa do ex-presidente Fernando Collor congelar boa parte das economias de brasileiros.

Mas, ao contrário da polêmica medida de Collor, o confisco não está nos planos das autoridades europeias.

Quais são as iniciativas?

O primeiro gatilho para a onda de desinformação foi a divulgação do White Paper for European Defence – Readiness 2030 (traduzido livremente como Livro Branco sobre Defesa Europeia – Prontidão 2030). O documento propõe a definição de instrumentos para ajudar os países da UE a investirem mais nos setores de defesa.

A segunda iniciativa criticada é a União de Poupanças e Investimentos, criada para canalizar investimentos dos cidadãos da UE para vários setores, com a criação de fundos a nível europeu.

Logo após a divulgação dos planos, publicações nas redes sociais distorceram o teor dos projetos. “A Comissão Europeia planeja tirar 10 trilhões de euros das economias dos cidadãos para a defesa da UE. Isso é suicídio econômico. Tire seu dinheiro dos bancos europeus. Eles vão tirar seu dinheiro da sua conta bancária”, escreveu um usuário no X.

No YouTube e no Telegram, também circularam vídeos com mensagem igualmente alarmistas. “A UE está buscando nossas economias! Sob o pretexto de ‘defesa’, bilhões de fundos privados estão prestes a fluir para a indústria de armas. A democracia é uma coisa do passado — agora Bruxelas e Ursula von der Leyen estão decidindo o que acontece com nosso dinheiro. Investimento forçado para a guerra?”, dizia um deles, em referência à presidente da Comissão Europeia.

Não, a UE não planeja confiscar poupanças

A União de Poupanças e Investimentos é a execução de um objetivo antigo da UE de implementar a unificação dos mercados de capitais. “É um esforço para criar um mercado de capitais unificado para a Europa, harmonizar leis, eliminar fronteiras e estabelecer oportunidades comuns de investimento europeias”, explicou Florian Heider, diretor científico do Instituto Leibniz de Pesquisa Financeira em Frankfurt, em uma entrevista à DW.

Carsten Brzeski, economista-chefe do ING Bank, explica que as necessidades de investimentos na região não podem ser inteiramente atendidas pelos governos. “O investimento privado também é essencial. Há uma quantidade substancial de poupança na Europa em contas bancárias com juros baixos. A questão é: esse dinheiro inativo não pode ser usado para investimentos econômicos mais produtivos?”

De acordo com a UE, cerca de 10 trilhões de euros estão atualmente mantidos em contas bancárias comuns em toda a Europa. A UE quer criar incentivos para que os cidadãos invistam suas economias nos mercados de capitais, por exemplo, para garantir recursos para a aposentadoria. Pela iniciativa, pequenas e médias empresas também devem ter acesso mais fácil ao capital em nível europeu.

No entanto, embora tenha sido desenhado como uma opção facultativa, o programa foi interpretado como muitos internautas como uma forma de expropriação. “A única maneira do estado acessar o dinheiro das pessoas é por meio de impostos”, explica Heider.

Ele vê a iniciativa da UE como uma tentativa de criar mais transparência e compreensão dos mercados financeiros: “Você não sabe o que o banco faz com o dinheiro em sua conta poupança. Por exemplo, você não sabe para quais empresas seu banco empresta dinheiro”, ressalta. “Ao investir no mercado de capitais, você pode escolher exatamente onde quer investir. A UE quer lhe dar mais controle, o que é o oposto de expropriação.”

A UE pode investir as poupanças em defesa?

Outra acusação comum é a de que a UE investiria o dinheiro dos poupadores em defesa sem o conhecimento deles. Muitas publicações no X se referem a uma reportagem da agência de notícias russa TASS de 5 de março. A matéria afirma que “a Comissão Europeia estima o nível total de poupanças não utilizadas dos cidadãos da UE em 10 trilhões de euros, e pretende encontrar maneiras de mobilizar esse dinheiro para financiar seus planos de militarizar a Europa e apoiar o complexo militar-industrial europeu”.

Para o porta-voz da Comissão Europeia Olof Gill, a manchete representa um “exemplo claro” dos esforços russos para manipular informações. “Conforme claramente descrito pela presidente von der Leyen, pela comissária (Maria Luís) Albuquerque e por uma ampla variedade de publicações oficiais da Comissão Europeia, os cidadãos da UE desfrutam e continuarão desfrutando de total liberdade para investir com base em suas escolhas pessoais: eles sempre terão controle total sobre onde querem manter e alocar seu dinheiro”, afirmou em resposta a questionamentos da DW.

Em suma, qualquer um que queira investir em defesa pode fazê-lo. “Mas ninguém pode forçar os poupadores a fazer algo com seu dinheiro que eles não queiram”, diz Brzeski.

Fomentando medos

Alguns usuários chegam, inclusive, a defender a retirada de dinheiro da UE. De acordo com Heider, essas alegações são uma forma deliberada de disseminar desinformação. “A intenção por trás disso é enfraquecer a Europa. Se o dinheiro não estiver na Europa, ele beneficia outros países, não a Europa. Claro, você pode investir em outros países. No entanto, a vantagem da zona do euro é que ela é legalmente segura, oferece garantias de depósito e não tem risco cambial”, disse.

As vantagens também são reconhecidas por investidores estrangeiros – e atualmente o dinheiro está fluindo para os mercados europeus. “Estamos observando uma tendência na direção oposta. O capital está vindo dosEUApara a Europa, e é por isso que os mercados de ações europeus tiveram um desempenho tão bom nas últimas duas a três semanas. Muitos investidores se realocaram dos EUA para a Europa”, observou Brzeski.

Com base no sistema legal atual, a UE não tem acesso a contas de poupança privadas. Pelo contrário, uma série de regulamentações da UE são projetadas para proteger as economias dos cidadãos. Um exemplo é o Deposit Guarantee Scheme, que compensa os investidores em caso de falências bancárias.