25/10/2023 - 13:15
Quando a beat music chegou à comunista Alemanha Oriental, o autor e radialista Wolfgang Martin, nascido em 1952, era um adolescente. Ele ficou fascinado com esse novo som com que sobretudo quatro rapazes de Liverpool, na Inglaterra, haviam contagiado todo o mundo, não só o ocidental.
No começo dos anos 60, a “Cortina de Ferro” dividia a Europa entre o Oeste democrático e o Leste sob influência da União Soviética. Havia dois Estados alemães: a ocidental República Federal da Alemanha (RFA) e a República Democrática Alemã (RDA), uma ditadura socialista. Em 1961 ergueu-se o Muro de Berlim, dividindo ambos não só politicamente, mas fisicamente.
Além disso, havia grandes diferenças de cultura, em especial a jovem. No Ocidente a febre do rock’n’roll há muito se alastrara, graças a astros como Little Richard e Elvis Presley. Para as gerações mais velhas, tratava-se de algo estranho e até ofensivo, mas que não havia mais como deter. Então nasceu um gênero ainda mais “duro”, a beat music. E ela não parou diante da Cortina de Ferro.
“Cantores popularescos”
The Beatles, que já haviam contagiado todo o Ocidente, eletrizaram não só a juventude, mas também muitos músicos da RDA, que tentavam copiar seu estilo. O radialista Martin vivenciou tudo, desde o lançamento da carreira do Beatles, aos diversos grupos de beat que logo despontaram na Alemanha Oriental. Ele era fanático por música, escutava as rádios ocidentais e as novas bandas do Leste e do Oeste.
De início o regime comunista alemão tolerava esses sons “do outro lado”. A fim de aliviar um pouco a vida dos jovens contidos pelo Muro, permitia-se que escutassem a música que quisessem.
Assim, na popular revista de cultura Das Magazin, uma correspondente de Londres comentava, benevolente: “Os Beatles são um grupo de cantores popularescos entre 20 e 24 anos de idade, que tocam guitarras elétricas e tambores e, com alegre resistência física, dançando ritmicamente o twist para baixo e para cima, lançam sua música num amplificador mecânico.”
“A exuberante, desenfreada alegria juvenil de sua apresentação passa para o público, prende e contagia jovens e velhos”, prossegue o artigo do periódico alemão-oriental. E os discos dos Beatles também invadiam as casas: a gravadora Amiga, da RDA, chegou a lançar alguns.
Beat music declarada inimiga de classe
Mas esse idílio durou pouco: música, bandas e penteados logo saíram de controle. O governo socialista aproveitou como pretexto os tumultos durante um concerto dos Rolling Stones em Berlim, em setembro de 1965, para declarar a beat music “inimiga de classe”. As autoridades receberam a indicação de “proceder com todo o rigor contra tais excessos durante e após os eventos de dança […], assim como contra essa ‘música de hotentotes'”.
O chefe de Estado e partido da RDA de 1950 a 1971, Walter Ulbricht, formulou assim seu repúdio: “Será mesmo que agora temos que copiar todo esse lixo que vem do Ocidente? Seria o caso de dizer ‘chega’ à monotonia do iê-iê-iê, ou como quer que a coisa se chame.”
Wolfgang Martin se inspirou nessa citação tornada clássica para o título de seu livro Schluss mit dem Yeah, Yeah, Yeah? (Chega de iê-iê-iê?). Nele, descreve não só sua própria trajetória musical como também como a Beatlemania tomou conta da RDA e quão forte foi a influência do quarteto de Liverpool sobre os músicos alemães-orientais. E registra também o impacto sobre os fãs e bandas quando, no outono de 1965, a liderança socialista resolveu proibir a beat music.
Apenas na cidade de Leipzig, 44 conjuntos de música jovem foram praticamente criminalizados – e mesmo assim nunca abandonaram realmente o iê-iê-iê. Em seu livro, Martin conta também a história desses músicos, entrevistando celebridades pop da RDA como Veronika Fischer, Frank Schöbel ou Dieter Birr, do grupo Puhdys, que contam sobre sua paixão pela música e seu poder de resiliência durante os anos em que estavam proibidos de tocar seu gênero favorito.
Influência indelével dos quatro de Liverpool
No começo da década de 70, por fim, o regime da RDA, agora liderado por Erich Honecker, abrandou a interdição, e anos mais tarde permitiu até apresentações de artistas do Ocidente, como Bruce Springsteen ou o alemão ocidental Udo Lindenberg.
Mesmo bandas dos anos 70 e 80 – entre as quais Silly, Karat, City ou Puhdys, também conhecidas no Oeste –, formadas bem depois de os Beatles já terem se separado, reconhecem que suas raízes estão na música do quarteto de Liverpool.
Martin ilustra sua viagem pelos meios musicais e o quotidiano da RDA com fotos de capas de álbuns, das bandas e com recortes de jornais da época. Hoje esses anos parecem quase cômicos, mas na época eram a dura realidade para a população da Alemanha comunista.
Martin transformou sua paixão em profissão, como autor de programas de rádio e diretor de música de diversas emissoras. Schluss mit dem Yeah, Yeah, Yeah? é uma obra de história alemã: história contemporânea e, naturalmente, também história da música pop, escrita por um nerd com grande amor pelos detalhes. And the beat goes on.