26/04/2021 - 12:17
Como primeira mulher oriental a ganhar os Oscars de melhor filme e melhor direção, Chloé Zhao fez história. Sua força: combinar o detalhismo de uma expert do cinema com o olhar infinitamente curioso de quem é de fora.A estrada da cineasta Chloé Zhao até Hollywood foi longa. Assim como Fern, a protagonista do filme Nomadland, que lhe valeu o Oscar de Melhor Filme e Melhor Direção em 2021, sua vida tem sido marcada por um espírito de viajante que a levou da cidade natal, Pequim, passando por Londres, Nova York e as áridas paisagens de Wyoming, até Los Angeles, onde ela é agora uma das diretoras mais solicitadas do show business.
Isso não quer dizer que Zhao vá permanecer na metrópole: ela prefere Ojai, uma cidade mais a noroeste, nos montes Topatopa. Todo perfil publicado sobre ela tem forçosamente que mencionar que ela vive com “dois cachorros e três galinhas”. Alguns também mencionam seu parceiro, o fotógrafo de Nomadland, Joshua James Richards.
Mas não importa que rota tenha tomado: ela chegou a um momento de glória em sua carreira. Até agora, o filme estrelado por Frances McDormand, como uma nômade moderna, vivendo numa van, já ganhou mais de 50 prêmios, inclusive quatro no 36º Independent Spirit Awards e o Leão de Ouro em Veneza. E neste domingo (25/04) Chloé Zhao fez história, como primeira mulher oriental a vencer nas duas principais categorias do Oscar – além de segunda “melhor diretora” nos 93 anos da história do prêmio.
Redefinindo os gêneros hollywoodianos
A trajetória da diretora nascida em 1982 na China prossegue em grande estilo: logo após os quatro meses de filmagem de Nomadland, em regime de guerrilha, ela começou a trabalhar em The Eternals, um filme de super-heróis da Marvel com estreia mundial marcada para novembro e um orçamento de US$ 200 milhões. O elenco estelar inclui Angelina Jolie, Gemma Chan e Kumail Nanjiani, e, segundo consta, a primeira personagem LGBTQ do Marvel Cinema Universe (MCU).
Depois de assistir Nomadland – esse tocante retrato da nova classe baixa dos Estados Unidos, com seus trabalhadores mais velhos vivendo em vans e atravessando o país em busca de “bicos” sazonais para sobreviver – o espectador se pergunta como será a abordagem da roteirista e diretora de um filme de super-heróis. O que parece certo desde já é que ela surpreenderá com uma nova perspectiva sobre um gênero cinematográfico americano mais do que gasto.
É o que Zhao tem sempre feito: tanto seu longa de estreia, Songs my brothers taught me (Canções que meus irmãos me ensinaram), de 2015, como Domando o destino, dois anos mais tarde, lançaram nova luz sobre o gênero faroeste. Ambos apresentam histórias de adolescentes Lakota Sioux, vivendo na reserva indígena de Pine Ridge, em Dakota do Sul.
Em Nomadland, Zhao reinventou a linguagem visual do road trip movie americano, tornando-o vivo e original, ao mesmo tempo que se mantém fiel à mitologia cinematográfica hollywoodiana. Sua abordagem combina o obsessão detalhista de um iniciado com o olhar fresco e a infinita curiosidade de quem é de fora.
China esnoba e bloqueia
Apesar do caráter histórico da conquista de Chloé Zhao, o país em que nasceu e foi criada está se mantendo basicamente silencioso a respeito. Até a tarde desta segunda-feira, as duas principais emissoras da China, a CCTV e a Xinhua, não haviam noticiado sobre a premiação. Antes, logo após sua postagem, foi censurada a mensagem de uma revista de cinema anunciando a vitória no Weibo, a segunda maior plataforma social do país.
Ao que tudo indica, a fonte dessa campanha de anulação foram declarações dadas pela cineasta em 2013, criticando a República Popular da China como “um lugar de mentiras”. Na época, a rebordosa nas redes foi praticamente imediata, com usuários nacionalistas tachando Zhao de “traidora”.
Em março, depois que Nomadland ganhou quatro Golden Globes, o tabloide estatal Global Times louvara a artista como “orgulho da China”. Nesse ínterim, contudo, os comentários de 2013 vieram à tona, e, de acordo com diversos observadores, material de publicidade e referências ao filme foram eliminados de toda a imprensa chinesa.
Ainda assim, o editor do Global Times Hu Xijin tuitou seus parabéns a Zhao – só para o mundo externo, já que o Twitter é bloqueado na China: “Ela é uma excelente diretora. Como natural de Pequim lutando nos EUA, as tensas relações sino-americanas podem lhe trazer alguns problemas. Esperemos que ela se torne cada vez mais madura em lidar com esses problemas.”
Sentimento sem sentimentalismo
O “melhor filme” da Academia de Cinema em 2021 é estrelado pela dupla ganhadora do Oscar McDormand e o veterano David Strathairn, como seu companheiro de viagem. Para seus primeiros três filmes, contudo, Chloé Zhao mergulhou nas comunidades que retratava e só trabalhou com atores não profissionais: depois de ter a atenção captada por certos indivíduos reais, ela moldou sua ficção em torno deles.
Assim, encontrou John Reddy, o protagonista de Songs my brothers taught me, no anuário de uma escola de Pine Ridge, e o casteou como um jovem que sonha deixar a reserva indígena.
E quando Brady Jandreau, um caubói Lakota que ela conhecera ao rodar seu filme de estreia, teve uma queda de cavalo quase fatal, ela o contratou para Domando o destino, recontando sua história como a de um astro de rodeios lutando para encontrar um sentido de propósito, após lhe dizerem que não mais poderá cavalgar.
“Ela é basicamente como uma jornalista”, relatou a atriz Frances McDormand à revista The Rolling Stone, explicando o processo criativo de Zhao. “Ela se informa sobre a sua história e cria uma personagem a partir dela.”
Porém Zhao não confunde intimidade com pieguice: apesar de retratar gente vivendo nas margens da sociedade, não há pena nem romantismo deslocados. Como define McDormand, ela “traça uma linha, fina como uma navalha, entre sentimento e sentimentalismo”.
Coração caloroso, olhar gelado
Essa fina linha distingue os retratos de Zhao do Oeste americano daqueles de euro-românticos como Wim Wenders ou Michelangelo Antonioni, que se apaixonaram pelas grandiosas paisagens mas não dedicaram muito tempo a observar de perto os seres humanos que vivem no primeiro plano.
Embora a cineasta goste de trabalhar com gente de verdade e seus filmes transbordem empatia por cada personagem na tela, eles são obras rigorosas, sem nada de arbitrário; visualmente, de lirismo grandioso e, muitas vezes, impressionante beleza. Diversos críticos comparam seu uso da luz crepuscular ao do esteta supremo Terrence Malick.
Num perfil publicado pela revista Vogue em 2018, é citada uma das professoras de cinema de Zhao na Universidade de Nova York, que a admira por ter “um coração extremamente caloroso, mas um olho extremamente frio”.
Perto do fim de Nomadland, a declarada nerd do cinema enquadra a Fern de McDormand numa composição inspirada diretamente pela famosa tomada de John Wayne no clássico de 1956 Rastros de ódio, de John Ford.
É uma imagem ousada e incrivelmente eficaz, que situa essa sexagenária – que trabalha de meio expediente, por um salário mínimo, nos centros de embalagem da Amazon e em campings no deserto – em pé de igualdade como o mais famoso caubói da história. Ao combinar humanidade profunda e precisão fria, Chloé Zhao está lançando uma nova luz sobre as mais antigas histórias do cinema americano.