13/07/2016 - 17:21
Impossível ter estado no Brasil em maio sem ouvir falar do caso da jovem de 16 anos vítima de estupro coletivo, no Rio de Janeiro. O crime violenta um pouco de cada um de nós. Seja por compaixão à menor, seja por medo de sofrer barbárie parecida, seja por ver estampada todos os dias nos noticiários uma realidade incômoda. Afinal, esse é apenas um caso extremo entre cerca de meio milhão de estupros consumados ou tentativas de estupro, que acontecem anualmente no país. Desses crimes sexuais, 88,5% são contra mulheres e somente 10% do total são reportados à polícia, segundo a pesquisa “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, de 2014, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Enquanto os números explicitam a situação atual, uma análise histórica e sociológica permite enxergar como chegamos a isso. “A civilização no Brasil começou em 1500, na base do estupro. Os homens que desembarcaram aqui, criminosos condenados, enviados por Portugal para esvaziar suas cadeias, não respeitavam nem a integridade da mulher, nem outras civilizações”, aponta a procuradora de Justiça Luiza Nagib Eluf, especialista na área criminal. Com a mudança de d. João VI para o Brasil, acompanhado pela Corte portuguesa, 300 anos depois, veio outra classe de pessoas, mas se manteve a cultura patriarcal de sempre.
Se Luiza Nagib Eluf se ateve à história do Brasil para explicar o que vem sendo chamado de “cultura do estupro”, Eugênio Bucci vai mais longe. “A figura feminina é vista como ameaça na cultura do Ocidente, desde 2.900 anos atrás, quando começa na Grécia Clássica”, comenta o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro do Instituto de Estudos Avançados, da mesma universidade. Para ele, dois personagens da mitologia grega têm muita influência na relação homem-mulher até a atualidade: Édipo, base fundamental da psicanálise, e Tirésias, bem menos conhecido do que o outro, mas bastante emblemático.
Tirésias foi homem e mulher na mesma existência e, quando perguntado sobre quem sentia mais prazer, dúvida que inquietava o coração de todos, respondeu: “Se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem, com uma”.
Bucci reconhece que não pode falar como psicanalista, mas, sim, como observador e pesquisador que estuda a cultura. Ele considera que a psicanálise tem uma presença tão forte na cultura que é até difícil percebê-la, como o ar que respiramos. E, entre seus reflexos, está a intolerância em relação à mulher. Diferentemente do que Sigmund Freud disse, que a mulher teria inveja do pênis, ele acredita que é o homem que tem inveja do orgasmo da mulher. “Ele não suporta a intensidade da força vital que emana da mulher. Nada é mais assustador para o olhar masculino do que uma mulher livre”, argumenta.
Para Luiza e Bucci, uma forma de opressão da sexualidade e liberdade feminina está na religião. “Na teologia, a mãe de Jesus é virgem, neutralizada, não sentiu o prazer de conceber”, aponta o professor. “As religiões são masculinas. A maioria esmagadora delas serve para oprimir a mulher. Tudo ao contrário do que pregava Cristo, por exemplo, um homem inteligentíssimo, que pregou a não violência”, complementa a procuradora. As regras religiosas e da sociedade em geral, ambas criadas dentro de uma cultura patriarcal, reforçam as diferenças de comportamento esperadas dos gêneros feminino e masculino.
Como dizia a francesa Simone de Beauvoir, escritora, filósofa e expoente do feminismo, a mulher não nasce mulher; é adestrada a sê-lo, desde as brincadeiras de boneca e casinha. Hoje o mesmo argumento é usado para o papel masculino por movimentos de liberdade sexual e afirmação de gênero. “E eles têm razão, se pensarmos que o menino aprende a brincar de luta, entre outras coisas supostamente de menino. Por isso são tão legais todas as formas que bagunçam o gênero”, diz Bucci. Para ele, o cross dressing (pessoas que usam roupas do sexo oposto), que tem hoje o cartunista Laerte como maior representante no Brasil, é um bom exemplo disso, porque põe em xeque os modelos culturais aprendidos.
Cultura do medo
Não se trata somente da atitude masculina em relação à mulher, mas também das próprias mulheres, que não têm consciência da sua condição e de por que existe uma grande quantidade de regras que as prejudicam. Luiza lembra de formas institucionalizadas do machismo para reprimir a sexualidade feminina: a divisão feita entre mulher de família “recatada e do lar” e a “mulher da vida” ou prostituta, tratadas pelo código penal como mulher “honesta” e “decaída”, respectivamente. “A sociedade patriarcal educa a mulher para ter medo. Medo que elas não sabem nem do que é, e que as impede de se realizar como profissionais e mesmo como mulheres.”
Medo, inclusive, de ser culpada por provocar o estupro, como usar “roupas inadequadas”, estar em “lugares inadequados” ou até falar “coisas inadequadas”. “Não só no Brasil, mas no mundo, apenas 10% a 15% das mulheres que sofrem crime sexual vão buscar ajuda da polícia ou dos serviços de saúde, tamanho o constrangimento, a humilhação e a vergonha pelas ameaças sofridas”, diz o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett. Ele coordena o Ambulatório de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, serviço criado há 22 anos e referência na área, que atende 4 mil casos de estupro ao ano, atualmente.
No caso do estupro coletivo no Rio, Drezett lembra que há imagens do ocorrido com declarações dos autores sobre o que teriam feito à garota numa situação clara de inconsciência e incapacidade de consentir ou de se defender. “Mas mesmo assim se esperava o que ia dizer o resultado do exame de corpo delito, feito no Instituto Médico Legal cinco dias depois do ocorrido. Há uma limitação técnica desses exames que muitas vezes não é corretamente interpretada pelo Judiciário”, afirma.
Embora as disciplinas da medicina legal afirmem que sempre é possível verificar evidências de um abuso sexual, estudos feitos em diferentes estados do país já identificaram que, nos casos em que ocorreu penetração vaginal, essas evidências são encontradas apenas em cerca de 15% das vítimas. Para completar o cenário, os casos de estupro com penetração constituem uma minoria (15% ou menos), segundo levantamento do Ipea. “Apesar de sua importância, temos uma valorização por vezes muito desproporcional do corpo delito. A ausência de evidência no exame não deve ser interpretada como ausência de crime sexual”, analisa Drezett.
Mais um agravante para o problema no Brasil é que a impunidade é a regra, apesar de haver atualmente aparatos do Estado para proteção à mulher, como delegacias especializadas, casas-abrigo e o programa de atendimento às vítimas de violência sexual. “Combater a impunidade e aumentar a pena são duas coisas boas, pois nossa legislação aceita progressão no regime do cumprimento. Sou contra fingir que está fazendo. Porque hoje nem o aparato estatal, nem o policial, nem a Justiça funcionam direito, e somente cerca de 7% dos crimes são investigados e punidos”, revela a procuradora.
Equilíbrio de forças
Para Luiza, os grandes avanços na questão de gênero no Brasil são recentes. Vieram com a Constituição Federal de 1988, inequívoca ao dizer que homens e mulheres são iguais. Ela também equiparou todos os filhos – independentemente da natureza da filiação e sexo, todos têm o mesmo direito –, e o homem casado passou a poder reconhecer filhos concebidos fora do matrimônio. Outra mudança considerável foi o direito de aborto em caso de estupro, risco à saúde da mulher e feto anencefálico – os únicos permitidos até hoje. “Demos um passo gigantesco na proteção da criança. E também da mulher, que era sempre considerada a errada da história quando o filho não era legítimo.” Na opinião de Luiza, a Constituição é muito criticada porque representou uma guinada indesejada pelos reacionários, grande parte da sociedade.
“Para o discurso conservador, é mais cômodo protestar contra o estupro de uma mulher do que apoiar uma mulher desejante e livre”, argumenta Bucci. Pela mesma razão, é mais fácil reservar à mulher o lugar de objeto sexual do que o lugar de sujeito atuante, dona do seu desejo, do seu destino, da sua opinião. “A mulher como vítima ou como objeto é sempre passiva”, afirma.
O quadro de passividade vem mudando. Hoje há uma grande movimentação feminista mundial. Apesar disso, as projeções de igualdade de gênero no mercado de trabalho são para daqui a 100 anos, no Brasil e no mundo. Difícil esperar outra coisa, já que a mudança de mentalidade é sempre um processo lento. Que o digam as francesas: elas só conseguiram o direito de voto quase 150 anos após a Revolução Francesa, comemorada como o nascimento da democracia. “Provavelmente eu vá morrer com noções machistas das quais nem tenho consciência. E você também”, provoca Bucci.
Por último, mas não menos importante, é essencial destacar que os valores masculinos também dominam hoje a forma humana de lidar com a natureza, que é uma figura feminina, assim como a ideia de “Mãe Terra”. A consequência disso tem sido o esgotamento dos recursos naturais, como já havia alertado, no século 19, Helena Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica. “Para vivermos num ambiente de menos opressão, é necessário uma perspectiva ecológica, de valorização do feminino”, diz Bucci. Afinal, o resgate da parte enfraquecida fortalece e re-equilibra a todos. Não é bom apenas para a mulher, é bom para a humanidade.