A ciência alimenta a nossa esperança de que o planejamento e a organização possam conduzir a evolução humana a um plano superior. Mas o que acontece quando isso se revela uma suposição perigosa?

Depois de escapar do laboratório, o monstro criado por Victor Frankenstein iniciou uma jornada violenta de assassinatos e desordens. No entanto, tinha potencial para o bem: ansiava por amizade e amor e ajudou uma pobre família que passava fome.

    Frankenstein, o romance de Mary Shelley, é, pelo menos em parte, a história da responsabilidade abandonada. O cientista Victor Frankenstein, que havia desejado “derramar uma torrente de luz em nosso mundo escuro”, acaba por renunciar a toda a responsabilidade moral sobre sua criação, que abandona na esperança de esquecer o que havia feito. Na sequência do tema, surgiu uma longa lista de cientistas loucos em Hollywood que buscam o poder fugindo da responsabilidade.
A ciência (e a tecnologia) significa poder sobre o mundo, e poder cada vez maior sobre nossos “eus” biológicos. O ideal humanista pretende utilizar a tecnologia para aperfeiçoar a humanidade. Tendemos, porém, a esquecer que usar o saber para melhorar o mundo é um projeto tão antigo quanto a própria ciência. A forma como empregamos a ciência no mundo de hoje traz à tona questões perturbadoras de significado, valores e responsabilidade.

Ciência e identidade

Consideremos, por exemplo, o caso do transumanismo, que se concentra no indivíduo em vez de na melhoria social. A doutrina da moda é orientada para o futuro e se baseia em tecnologias novas e ainda confinadas às páginas dos livros de ficção científica. Seu objetivo final é transcender as limitações biológicas humanas e criar uma imortalidade baseada na tecnologia. Enquanto as origens tecnológicas do transumanismo se encontram na cibernética, nanotecnologia e engenharia genética do período posterior à Segunda Guerra Mundial, sua essência se conecta à antiga busca alquímica da pedra filosofal, que supostamente proporcionava a imortalidade aos alquimistas.
O transumanismo vai do realismo ao surrealismo futurista, da terapia com células-tronco à transferência da consciência humana para máquinas, ponto em que ele se transforma em um estranho híbrido religioso. O pensador transumanista britânico Max More escreve que o transumanismo é “uma expressão vaga dada à escola de pensamento que se recusa a aceitar as limitações humanas tradicionais, tais como morte, doença e outras fragilidades biológicas”.

Outros exemplos mais antigos também têm dado à ciência o poder de influenciar o que significa ser humano. Na segunda metade do século 19, os romances de ficção científica do escritor francês Júlio Verne capturaram uma visão desenfreadamente avançada da ciência, com maravilhosas criações como submarinos que navegavam em águas profundas e naves que viajavam para a Lua. A ciência deslumbrou a imaginação humana e estabeleceu uma crença universal no progresso humano, moral e material.
Mas um lado mais escuro dessa imaginação também surgiu no final do século 19. Nos Estados Unidos, uma mistura potente de medos culturais – alta imigração e cidades como focos de evolução, depravação e degeneração – cruzou com o conhecimento científico da época para criar a eugenia.
O objetivo dos eugenistas era colocar a ciên­cia a serviço do aprimoramento da linhagem humana. Mas alguns pareciam tratar o ser humano como “rebanho”, dedicando-se a corrigir seus traços “negativos”. Nos EUA e na Grã-Bretanha, a eugenia foi muitas vezes baseada em classes e privilégios, com as classes média e alta sendo consideradas biologicamente superiores.
Por um tempo a doutrina conquistou popularidade, subscrita por humanistas científicos como o autor de ficção científica britânico H. G. Wells, que estava preocupado com a imortalidade da espécie. Mas o entusiasmo dos cientistas nazistas pela disciplina acabou por denegri-la.

 

 

O cientista idealHumanistas cientificistas, como o historiador belgo-americano George Sarton, um dos fundadores da disciplina história da ciência, adotam uma visão mais benigna das relações entre poder e saber (embora ainda elitista). Em 1924, no artigo Um Novo Humanismo, ele escreveu que a ciência é fruto “de uma colaboração internacional e atemporal de um só corpo organizado, o tesouro comum de todos os povos, de todas as raças; de fato, o único patrimônio em que todos têm direitos iguais”.
Para Sarton, o verdadeiro propósito da humanidade é a “criação de novos valores intelectuais; o gradual desvelar e desdobrar da harmonia da natureza, o desenvolvimento e a organização do que chamamos arte e ciência”. Mais uma vez, a definição concedia à ciência poder sobre os valores e significados.
Outra universalista, Morris Goran, em artigo publicado no The Journal of Higher Education, em 1943, descreveu seu cientista perfeito em termos quase utópicos: “Ele pertencerá à humanidade em todos os momentos, servindo aos valores humanos, eternamente vigilante em relação a transgressões e policiando a sociedade contra a tirania, a intolerância e o despotismo. A ameaça da recusa dos cientistas do mundo em cumprir as ordens dos tiranos assegurará para sempre a solução pacífica dos problemas do mundo.” Esse é o cientista filósofo-rei, cujo conhecimento da ciência lhe confere poder e autoridade moral.

Na década de 1970, a ciência e o humanismo finalmente entraram em choque quando se cruzaram na sociobiologia. Nessa nova disciplina, a teoria evolucionista foi aplicada ao comportamento social em animais e humanos. Formas extremas de determinismo biológico argumentaram que o status quo social refletia a biologia. A sociedade, com efeito, estava sendo forçada a espelhar a ciência do dia. Aplicar o determinismo biológico à agressividade masculina, à subjugação do sexo feminino ou a índices de quociente de inteligência (QI) mais atrasados entre afro-americanos sugeria uma realidade imutável de desigualdade e inferioridade.

O paleontólogo e biólogo evolucionário americano Stephen Jay Gould lutou contra os determinismos em livros populares como A Falsa Medida do Homem, de 1981 (Editora Martins Fontes). Para Gould, a humanidade compartilha uma herança genética comum, a partir da qual existem significativas diferenças sociais e culturais. O diplomata e filólogo americano G. P. Marsh, o primeiro a fazer um alerta a respeito do impacto ambiental da humanidade sobre o mundo natural, a partir do século 19, também acreditava que a ciência e a tecnologia iriam resolver os problemas criados por humanos. Mas ressaltava que essas soluções criariam novos problemas.

Vamos precisar que a ciência e o humanismo trabalhem juntos no futuro. Devemos aprender com os erros do passado. Não devemos esperar da ciência que ela nos forneça significados definitivos. Ela não pode nos dizer o que devemos ser nem o que significa “melhor”. A ciência é uma criação humana e tem o significado e o propósito que cada geração lhe dá. A responsabilidade e o comportamento ético devem ser fundamentais para as escolhas que fazemos.