25/04/2016 - 18:36
Quatro anos depois do incêndio que destruiu 70% da Estação Comandante Ferraz, a base brasileira na Antártica, sua reconstrução finalmente ganhou novo embalo. No verão de 2016/2017, a casa brasileira na Antártica deve ser reinaugurada. Mas as pesquisas do Programa Antártico Brasileiro (Proantar) estão à beira do congelamento total. O projeto arquitetônico (tema de reportagem na edição 483 de PLANETA, de junho de 2013) desencalhou após quase três anos esperando sua execução. Já o orçamento para pesquisas em 2015 sofreu redução expressiva e resultou em um corte pela metade das equipes enviadas para lá. Para 2016, as perspectivas são ainda piores.
Sem dinheiro para os cientistas, a casa nova pode ficar vazia, alerta Jefferson Cardia Simões, coordenador-geral do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera e professor titular de Geografia Polar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Simões é o brasileiro com mais experiência polar em todo o programa e já foi várias vezes ao continente gelado nos últimos 30 anos. Em conversa com PLANETA, ele enfatiza que as pesquisas na Estação, instalada na Península Antártica, representam hoje cerca de um terço do trabalho total desenvolvido pelos brasileiros no continente. Ele mesmo atua no interior da Antártica, no módulo implantando sob sua liderança, o Criosfera 1, em uma região coberta permanentemente por gelo e neve, como indica o nome.
Com seu jeito cordial, sem deixar de ser crítico, Simões fala de perspectivas, reestruturação do Proantar, falta de conhecimento nacional sobre a região e do trabalho realizado lá que tem reflexos no Brasil.
PLANETA – Por que as novas instalações da Estação Comandante Ferraz ainda não estão prontas? A última notícia referente a ela no site governamental Agência Brasil é de 2014, e informa sua inauguração no início de 2016.
SIMÕES – Há tempos já sabíamos que ia demorar mais do que isso. O contrato de construção só foi assinado em 2015. Ficou dois anos parado, porque os regulamentos e exceções eram tantos que nenhuma empresa nacional se interessou. Abriu-se a licitação para o mercado internacional e quem ganhou foram os chineses. Eles estão fazendo o estudo do terreno no momento, depois irão fabricar as partes e montar a estação no verão de 2016/2017.
PLANETA – Enquanto esse ciclo não se completa, como estão seguindo as pesquisas?
SIMÕES – Hoje o Programa Antártico Brasileiro cobre uma área geograficamente muito maior que a da Estação Comandante Ferraz. As estações têm mais fundo político de demonstração de interesse do país na Antártica. A ideia de que a estação é o foco da pesquisa brasileira no continente é das décadas de 1980 e 1990. Naquele momento, de começo das pesquisas, não existiam as outras estruturas. O incêndio só afetou 20% dos projetos de pesquisa – principalmente na área de ciência da vida, ou seja, biologia marinha, ecologia, física e química da atmosfera superior. A maioria, cerca de 70%, é feita em outras plataformas, como navios (o Brasil tem dois), acampamentos na rocha e o módulo Criosfera 1. O problema ficou sério em 2015, por causa da crise econômica. Em 2015 tivemos de reduzir as equipes que foram para a Antártica entre 40% e 50%, em média. E o mais grave é que ainda estamos sem recursos alocados a partir de julho. Se não sair dinheiro novo, o sistema para.
PLANETA – Como se faz no caso de pesquisas tão específicas como a de vocês?
SIMÕES – Durante seis meses ainda dá para fazer alguma coisa em laboratório, mas isso tem limite. Depois de um ano, no entanto, já começa a faltar recurso financeiro para coisas básicas, como insumos. Estamos começando a bater no fundo do poço. Se continuar o contingenciamento, cerca de 80% a 90% dos projetos param na metade deste ano. Se não houver verba até lá, interrompemos as investigações científicas e perdemos todos os bolsistas. Sem trocadilhos, fica tudo congelado.
PLANETA – Significa que ninguém irá à Antártica no próximo verão?
SIMÕES – Não sei como será. Se não tiver dinheiro, vamos ter de arrancar do próprio bolso. Já disse isto para vários deputados: não adianta investir na estação e não investir na ciência, porque casa vazia não faz ciência. Se realmente queremos manter um programa verdadeiro e que traga beneficio direto para a sociedade brasileira, precisamos de recurso financeiro.
PLANETA – Por que investir na casa se não tem verba para ocupá-la?
SIMÕES – Os recursos são fatiados. Uma coisa são os recursos do Ministério da Defesa, que está pagando a Estação. Outra são os recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que financia as pesquisas. A situação do MCTI já está muito mais apertada. Para se ter uma ideia, três anos de todo o Programa Antártico Brasileiro, para mais de 20 equipes, demandam cerca de R$ 15 milhões. Não é nenhuma fortuna, por ano, R$ 5 milhões para essa parte científica. Mas, por enquanto, não existe esse dinheiro.
PLANETA – O que seria ideal para o Proantar seguir com toda força?
SIMÕES – Sair um edital extra de pesquisa, que é a demanda da comunidade científica. Desde 2014 está aberto um edital para os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), que atendem projetos de R$ 250 mil a R$ 10 milhões, por quatro anos. Mas até hoje não foram anunciados os resultados, porque o governo não tem os recursos. Para termos verba em 2017, precisamos desse edital agora, porque leva mais tempo para completar avaliações, etc. Um projeto do Programa Antártico, devido a distância, começa em R$ 500-700 mil para dois ou três anos.
PLANETA – Há mais de 30 anos indo à Antártica, o sr. sente que o continente tem mudado em função do acesso mais fácil de turistas?
SIMÕES – Hoje, com US$ 25 mil é possível ir quase ao centro do continente. Está tudo mais fácil, existem operadoras turísticas. Nós, brasileiros, precisamos ter uma visão mais moderna do que significa ir para a Antártica atualmente, do que é fazer ciência lá e do que é preservação ambiental da Antártica. É um continente quase do tamanho da América do Sul, com 14 milhões de quilômetros quadrados. Ou seja, se acontecer algo no Rio de Janeiro pode não afetar Quito, no Equador. A estação está instalada na Península Keller, na Ilha Rei George, que fica a 300 km do polo sul, a 62º de latitude sul, com média de -2,8ºC e muito vento. Para você ver como o brasileiro não entende o que é a Antártica, geralmente se mostra a estação em ambiente polar, mas ali está fora do Círculo Polar. É uma área muito importante, porque é a porta da Antártica e um dos lugares que mais se aqueceram no mundo, As pesquisas de variabilidade do clima e retração de geleiras têm aquela faixa como uma das áreas de maior atenção. Já no interior do continente, onde está o Criosfera 1, a 84º de latitude sul, o ambiente é polar, muito estável e com média de -35ºC.
PLANETA – Como é feita a pesquisa no Criosfera 1?
SIMÕES – Principalmente à base de testemunhos do gelo. A gente perfura 150 metros, leva todo esse gelo dividido para análise. Cada amostra dele passa por dezenas de testes e pode contar várias histórias. Nelas vemos a variação de temperatura do passado, detectamos erupções vulcânicas, identificamos poluentes – até microrganismos alguns colegas já estão pesquisando nelas. Essas neves são muito potentes em questão de qualidade de dados.
PLANETA – O que o sr. destaca na reestruturação do Proantar?
SIMÕES – Fizemos uma reestruturação no Planejamento Estratégico 2013-2022 para mostrar uma ligação mais direta entre a Antártica e o meio ambiente brasileiro. Cada vez mais a ciência deve ter objetivos muito claros na relação com a sociedade e com as questões ambientais. Mas há o aspecto político também. Precisamos aumentar o protagonismo político do Brasil no Sistema do Tratado da Antártica. E, ao mesmo tempo, mostrar que fazemos ciência de qualidade. Hoje é possível fazer pesquisa na Antártica por satélite. Nós temos de ir à Antártica para responder a questões que não podem ser respondidas estando no Brasil.