Algo está mudando na geografia cinematográfica contemporânea. Talvez o melhor cinema latino-americano atual seja o da Argentina, animado por diretores relativamente jovens como Damián Szifrón (36 anos), Daniel Burman (38 anos), Pablo Trapero (41), Lucrecia Martel (46), Juan José Campanella (52) e Marcelo Piñeyro (59). Em busca da simplicidade e da criatividade, sem muitos efeitos especiais, um conjunto de filmes argentinos recentes lançou um olhar sensível, reconhecido pela sociedade, sobre o dia a dia. Basta dizer que, em 2011, enquanto 192 milhões de brasileiros compraram 141 milhões de ingressos de cinema, 40 milhões de argentinos compraram 50 milhões de ingressos. O cinema virou quase uma mania nacional

Com essa popularidade e um estilo muitas vezes próximo ao documentário, os filmes argentinos apresentam, com frequência, uma imagem inteligente do absurdo e da comédia da existência. Feito a partir da liberdade de tom, o cinema portenho tem conquistado prêmios internacionais, inclusive dois Oscars de melhor filme estrangeiro: em 1986, com A história oficial, de Luis Puenzo, e em 2010, com O segredo dos seus olhos, de Juan José Campanella.

A importância do cinema na cidade de Buenos Aires não é recente. Já entre os anos 1936 e 1946, os filmes portenhos foram os mais populares nos países de língua espanhola. “Fora desse âmbito, a cinematografia argentina é conhecida a partir de 1950, com os filmes de Leopoldo Torre Nilsson, rodados no exterior, e nos enredos políticos de Fernando Solanas, nos idos de 1970”, afirma o crítico de cinema Inácio Araújo, da Folha de S. Paulo.

A nova leva de filmes mostra proximidade com o cinema francês e italiano do início da década de 60. “A tônica parece ser fazer um filme para que o povo se veja nele”, observa Araújo. É na presença do cotidiano, na empatia com os personagens, no estilo austero da narração e nos parcos recursos tecnológicos que brota a grandeza criativa desses filmes, alimentados pela riqueza literária do país e por sua ampla classe média educada.

O governo tem estimulado a expansão do cinema doméstico, incentivando e subsidiando a produção local para resistir ao assédio publicitário dos blockbusters internacionais difundidos pela televisão. O Instituto Nacional de Cine e Artes Audiovisuais da Argentina (INCAA), similar à brasileira Agência Nacional do Cinema (Ancine), baixou recentemente uma resolução controversa, sobretaxando a reprodução de cópias de filmes pelas grandes redes de exibição. Atualmente, há 850 salas de cinema no país, contra 2.377 no Brasil.

O curioso é que os filmes que expressam tão intensamente a Argentina são também reconhecidos em outros países. Veja-se o filão das obras que focalizam a ditadura militar na década de 70. Para Araújo, esses filmes “falam de uma questão de justiça, e não de vingança; e com isso fica um cinema verdadeiro”. Não é por acaso que o primeiro grande reconhecimento da nova onda tenha sido o Oscar para A história oficial, em 1986. Na opinião de Araújo, um novo neorrealismo está surgindo na Argentina, por meio de filmes como Pizza, birra, faso, de Israel Adrián Caetano, Mundo grua, de Pablo Trapero, e La niña santa, de Lucrecia Martel, precursores do movimento renovador.

Escola argentina

“Encanta-me cada vez mais o modo como os cineastas argentinos incorporam nos seus filmes a tradição literária e a vocação teatral”, afirma o cineasta e professor de cinema Fermin Rivera, diretor do documentário Huellas y memória, sobre a vida do maior documentarista argentino, Jorge Prelorán (1933-2009). Rivera aponta o teatro na Argentina como a grande catapulta que projeta autores e atores no cenário da filmografia. “Veja o filme O homem ao lado, de Mariano Cohn e Gastón Duprat, outro marco recente do nosso cinema, no qual se pode antever uma dramaturgia teatral, aliada à característica principal dos filmes argentinos modernos, o elemento surpresa.”

Rivera, especialista em documentários, pressente que o próximo mapa da mina será o cinema documental. “Já temos uma linguagem que revela a Argentina não em sentido pitoresco, mas no registro verdadeiro e realista, contudo sem excluir um olhar poético.” A tendência é global. Segundo o diretor, 40% do cinema que se faz hoje no mundo são documentários.

O ano de 2012 promete ser auspicioso para o cinema argentino. Vários filmes vêm acumulando elogios e prêmios em festivais mais prestigiados. Entre os muitos sucessos, os críticos ressaltam Um conto chinês, de Sebastián Borensztein; O filho da noiva, de Juan José Campanella; Tempo de valentes, de Damián Szifrón; Carancho, de Pablo Trapero; Medianeiras, de Gustavo Taretto; Plata quemada e Las Viudas de los jueves, de Marcelo Piñeyro.

“Mas, sem dúvida, foi Nove rainhas, de Fabián Bielinsky, que, em 2000, abriu as portas do cinema portenho para salas além da Argentina, com um novo e prazeroso cinema”, ressalta Marcelo Magnasco, diretor da Faculdade de Audiovisuais, do Instituto Universitário Nacional de las Artes, em Buenos Aires. Diretor da mais antiga das 20 escolas de cinema existentes na capital, Magnasco tem consciência de que já existe uma “escola argentina” de cinema. Não há fórmula específica, mas sim “estilos” em que cada diretor procura construir a própria identidade, com foco na pluralidade do seu país.  

Olhar antropológico

“Os filmes de Campanella e Martel, por exemplo, constituem cinemas bem diferentes, mas ambos têm um movimento cultural que beira o antropológico”, avalia Magnasco. Ele cita também Abraços partidos, de Daniel Burman, que, na sua opinião, bem poderia representar não só a nova cinematografia como o próprio povo argentino. “Os espectadores se identificam com o garoto que vai pedir à avó os documentos para conseguir um passaporte e morar na Polônia. Ela responde: ‘Tudo bem, mas não me pergunte nada sobre a Polônia.’ Esta resposta somos nós, uma saída brusca para o futuro sem saber do passado”, explica Magnasco.

Para o crítico, o amadurecimento do cinema argentino se deve ao prazer dos diretores se reinventarem, num processo de criação que passa pelo fascínio da imagem que atrai o espectador, mas também é prosa rápida e ativa animando um longa-metragem. É essa a linguagem da maior parte dos enredos dos filmes, que nada mais são do que as tramas e os sentimentos da vida.
“Principalmente os nossos”, ressalta. “Passamos por todo tipo de crise e podemos ter um cinema que retrata uma irrealidade. Mas, neste país, a realidade do dia seguinte pode ser qualquer coisa”, ironiza Magnasco.

A grande certeza é que o cinema argentino consegue se mover com grande desenvoltura, desde as pequenas situações aos grandes temas, em meio à incerteza, que, afinal, é fácil de ser reconhecida por latino-americanos.
Essa é a verdadeira expressão da alma portenha, como dizia o famoso cartunista argentino Quino pela voz de Mafalda: “Será que amanhã teremos um dia normal?”