Os calungas, quilombolas do Planalto Central, descendem

diretamente de escravos foragidos. Isolados por cerca de 250 anos, constituem ainda hoje comunidades com hábitos muito particulares, que praticam uma economia socializada e desconfiam dos brancos. PLANETA os visitou para contar sua odisséiaEsta é a história de resistência de um povo do Planalto Central. Os mais antigos deles ainda se lembram das dificuldades que seus bisavós passaram para alcançar as escarpas da Serra da Contenda, as trilhas do vale do rio Paranã. Essa região do nordeste de Goiás – parte do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, que abrange áreas dos municípios de Teresina e Monte Alegre, a 340 km de Brasília – é o lar dos calungas.

Em 1982, os calungas se tornaram o último grupo de afrodescendentes identificados no Brasil. Dez anos depois, esses quilombolas tiveram suas terras reconhecidas como Sítio de Valor Histórico. Viveram por mais de 250 anos protegidos pela natureza, que reproduz ali traços da África. Sentiram-se em casa.

Cenas de um cotidiano perdido no tempo: 1.200 famílias cujo modo de vida mudou muito pouco graças a um isolamento favorecido pela condição geográfica

Hoje moram ali cerca de 1.200 famílias. Seus ancestrais chegaram no século 18, quando toda a região era conhecida como Cavalcante. Vieram como escravos para trabalhar nas Minas de Goyases, no último ciclo do ouro no Planalto Central.

As jazidas locais foram descobertas em 1722 por Bartolomeu Bueno, filho do bandeirante Anhangüera. Se o trabalho escravo já era mortificante na Bahia, de onde muitos parentes foram trazidos, nas minas a situação se agravou, com uma sucessão de castigos, chibatadas e assassinatos.

O povo passou então a sonhar com as serras mais elevadas, de acesso mais difícil, e muitos fugiram para o vale do rio Paranã (afluente do Tocantins), repleto de corredeiras e quedas d’água.

Lá os fugitivos e seus descendentes permaneceram enfurnados, como dizem, mesmo depois de terem sido identificados em 1982 pela antropóloga Mari de Nazaré Baiocchi, da Universidade Federal de Goiás. Alguns pesquisadores já faziam referência aos negros que habitavam o Vale do Paranã, mas não os reconheceram como grupo étnico.

No sentido horário, a partir de cima: mulher calunga na lida da roça; exemplo de parede de taipa-de-sopapo; casa típica da região, coberta com palha de buriti; a cruz indica a presença do catolicismo entre a população

NA MARGEM ESQUERDA do rio Tocantins, bem perto da Rodovia GO-118, em Teresina, começa um dos roteiros que conduzem até a área dos calungas. É a “trilha da serra”, tortuoso caminho de 70 km que conduz ao Vale do rio Paranã, onde as famílias moram em “vãos” – o Vão das Almas, Vão do Moleque e o Vão do Silêncio. Mas também há calungas no Ribeirão dos Bois e na Serra da Contenda. São cerca de cinco mil pessoas distribuídas em 206 mil hectares – o maior quilombo brasileiro e o de mais difícil acesso no País. A demarcação ainda não foi concluída.

 

Com 5 mil pessoas vivendo em 206 mil hectares, a área representa o maior QUILOMBO brasileiro – e o de mais difícil acesso no País

Chegando ao Paranã, após três horas de carro por estreitas picadas de terra, é preciso viajar um dia a cavalo, ou a pé, por trilhas íngremes, ou navegar duas horas num barco para atingir um dos vãos. Não foi por acaso que os primeiros calungas, na época em que eram chamados de negros minas, escolheram o Vale do Paranã como abrigo.

Os calungas, quilombolas do Planalto Central, descendem

diretamente de escravos foragidos. Isolados por cerca de 250 anos, constituem ainda hoje comunidades com hábitos muito particulares, que praticam uma economia socializada e desconfiam dos brancos. PLANETA os visitou para contar sua odisséia

A expressão calunga teria origem no idioma quimbundo, da África Ocidental, e estaria ligada à mitologia do povo fanti-ashanti. De acordo com ela, o deus trino Nzamé criou o homem a sua imagem e semelhança. Um aspecto desse deus deu-lhe a força, outro, o poder, e o terceiro, a beleza. Esse homem, Fam, sobrepujava em inteligência ao elefante, ao tigre e ao macaco e não quis mais adorar o deus. Passou a referir- se a ele com desprezo, com cantigas como: “Yéyé, ó, lá, yéyé/deus no alto, o homem na terra/cada um em sua casa/cada qual em sua casa.”

Nzamé decidiu castigar Fam, queimando as matas de onde ele retirava seu sustento. Para escapar da ira divina, Fam se refugiou sob o solo. Desde então, mora em terras que ninguém conhece ou pode acessar.

OS CALUNGAS NÃO seguem nenhuma religião africana. Aprenderam a ser católicos, numa estratégia de sobrevivência. Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Abadia, São João e São Benedito ganham animadas festas na época da estiagem, de abril a setembro. Como no passado mítico, quando Nzamé incendiou os bosques de Fam, essa época registra grandes queimadas em toda a Chapada dos Veadeiros.

A temporada é de fogo em muitos sentidos. Na Romaria dos Casamentos, de 10 a 17 de agosto, os casais enamorados podem oficialmente “deitá junto”. É nessa época que um dos padres de Cavalcante ou de Monte Alegre viaja até o Vale do Paranã para unir noivos com as bênçãos da Igreja Católica.

Os dias passam no ritmo desse povo, entre tarefas domésticas como pilar café, arroz e mandioca, plantar, colher, preparar a carne de porco para assar, fazer o fio de algodão e enrolá-lo no funil para depois tecer o pano no tear de dois quadros, dar comida aos animais e cuidar das crianças.

Crianças, por sinal, merecem toda a atenção. Não são espancadas nem ouvem xingamentos, passam de colo em colo e raramente se vê uma chorando. A solidariedade entre as famílias (um dos mais fortes traços da cultura calunga) certamente contribuiu para mantê-las isoladas por séculos.

As famílias moram em amplas casas feitas de taipa-de-sopapo – barro misturado com capim seco ou casca de arroz, posto sobre uma armação de madeira. São caiadas de branco graças ao caulim (uma argila muito clara diluída na água) e cobertas com um delicado telhado de palha de buriti. As casas têm duas portas e pequenas janelas para ventilação. A morada da matriarca de Vão das Almas, Procópia Ferreira, é um bom exemplo dessa arquitetura.

Os calungas pescam e caçam na região de mata nativa, e tudo que conseguem é compartilhado com os outros moradores. Nada do que possuem é supérfluo. Sabem o valor das coisas. Aprenderam na dor, na difícil trajetória de seus antepassados até o lar de hoje.

O calunga é orgulhoso e altivo, de poucas palavras, reservado. Não morre de amores pelo recente convívio com a cultura do branco. Observa-o com ar enigmático. A identificação do grupo, se contribuiu para a antropologia e o resgate da memória do negro no Brasil, também incentivou uma disputa entre os moradores dos vãos do rio Paranã e outras áreas habitadas pelos calungas.

Os calungas, quilombolas do Planalto Central, descendem

diretamente de escravos foragidos. Isolados por cerca de 250 anos, constituem ainda hoje comunidades com hábitos muito particulares, que praticam uma economia socializada e desconfiam dos brancos. PLANETA os visitou para contar sua odisséia

OS MORADORES DO Vão Calunga entendem que são os legítimos representantes desse povo. “Eu sou o verdadeiro calunga”, afirma Leó Kalunga; os demais representariam outra etnia ou seriam usurpadores da denominação. Essa aparente dissidência não impede um cordial e solidário relacionamento entre as comunidades.

No sentido horário, a partir da direita: corte de cabelo ao ar livre; cena da região que abriga a comunidade; crianças, grupo que merece atenção especial; duas gerações diante do desafio de conviver com os brancos.

A família de Leó seria a conservadora, a guardiã do nome, a que passa a cultura de uma geração a outra. Depois dela, haveria uma classe intermediária, formada por negros mestiçados com índios que habitaram a região, e que viveria no esforço de se igualar à primeira. Existe ainda um terceiro grupo, que por várias razões precisou se aproximar da rodovia GO-118 e ficou exposto a todo tipo de assédio. Não tem prestígio entre os demais, mas é procurado quando algum parente dos vãos precisa ir até a cidade.

O segundo grupo, de mestiços, chamou a atenção do naturalista francês Saint-Hillaire em 1819, quando ele esteve na cidade goiana de Jaraguá. Saint-Hillaire escreveu sobre eles, sem a pretensão de sabê-los calungas: “O mulato possui algo desse servilismo em que a sociedade brasileira mantém os homens de sangue mestiço, o que esses não esquecem jamais quando estão na presença de brancos. Essa inferioridade não existe realmente se se tomar por objeto de comparação a inteligência entre uns e outros. Talvez mesmo se possa afirmar que os mulatos têm maior vivacidade de espírito e facilidade em aprender do que os homens de raça caucásica.”

O isolamento em que vivem os calungas, aliado à herança cultural, levouos a adotar remédios próprios. Se o problema for cisco no olho ou vista inflamada, é tiro-e-queda usar mel de jataí, suco de limão, leite de mulher parida, grão de feijão ou benzedura.

Para sarar doença de criança, chá de sabugueiro ou de laranja. Umbigo que azangou (demora a cair) precisa de uma colherada de óleo de pau de ipu ou massagem com pena de galinha. Se continuar firme, na certa cairá com uma pitada de rapé com fumo torrado. E para curar de vez quebranto e disenteria, recomenda-se beber ruibarbo torrado com chá de poejo.

Os calungas também se acautelam diante dos fenômenos da natureza. Para não morrer galinha poedeira, assim que a primeira se for, o melhor a fazer é enterrá-la sem contar nada a ninguém. Para não chover durante a colheita, a solução é um bocado de fumo na boca, mascado lentamente, e uma folha verde oculta no chapéu. Tudo feito no maior silêncio. Também vale oferecer um ovo para Santa Clara, pondoo em local onde ninguém possa bulir – de preferência, no telhado da casa.

Os calungas passam seus ensinamentos de forma oral e num dialeto próprio, com uma pronúncia algo portuguesa, lembrança da época da colonização. Nóis não une significa que as pessoas não são amigas; nadar o burro é obrigar o animal a cruzar o rio. Algumas palavras usadas pelos calungas são nossas conhecidas, como muquifo (casebre) e cacunda (costas).

Os calungas, quilombolas do Planalto Central, descendem

diretamente de escravos foragidos. Isolados por cerca de 250 anos, constituem ainda hoje comunidades com hábitos muito particulares, que praticam uma economia socializada e desconfiam dos brancos. PLANETA os visitou para contar sua odisséia

As rotas para o refúgio

Os primeiros calungas fugiram da Bahia para Goiás há mais de 250 anos, na companhia de tropeiros que viajavam até a costa em busca de sal, seguindo estradas recém-abertas. Outros galgaram a Serra Geral, passando por caminhos íngremes e de vegetação densa, em busca da liberdade.

Por volta de 1865, a rota seria outra. Convocados para lutar na Guerra do Paraguai, em substituição aos soldados brancos, muitos escravos usaram o rio Miranda (na parte meridional de Mato Grosso do Sul) para escapar. A partir dele, os calungas percorreram os rios Paraná e Paranaíba até chegar ao Tocantins.

Um dos caminhos utilizados nessa fuga ficou conhecido como “trilho dos fugitivos do Miranda”. Existem referências a ele no Relatório da comissão de engenheiros junto às forças em expedição para a Província de Mato Grosso – de 1865 a 1866, que narra o esforço do Império para fortalecer a fronteira do Brasil com o Paraguai durante a guerra.

Menos de uma década depois, surgiram outras rotas, relacionadas à viagem de colonizadores e de suas famílias de Mato Grosso para Goiás, em busca de ouro. Eles se estabeleceram em um lugar chamado Ressaca (hoje Mineiros), no sul goiano, onde fundaram a Fazenda Flores do Rio Verde. Eram as poderosas famílias Carrijo de Rezende e Teodoro de Oliveira. Essas famílias “apartavam os

Essas famílias “apartavam os escravos machos das fêmeas”, para que não nascesse cria sem a autorização do patrão. Quando a regra era violada, a punição transformava-se em barbárie. Ao nascer, a criança tinha a cabeça decepada e o casal infrator era chicoteado. Há informações de que práticas semelhantes teriam perdurado nos confins de Mato Grosso e de Goiás até as primeiras décadas do século 20. Da Fazenda Flores do Rio Verde fugiram centenas de negros para o Vale do Paranã.