12/02/2025 - 13:16
Missionária assassinada a tiros em 2005 desafiou grileiros e fazendeiros para proteger a floresta e os trabalhadores rurais. Em Anapu, no Pará, ativistas falam em “consórcio da morte” e citam “cemitério clandestino”.Há 20 anos, seis tiros rasgaram o ar quando a missionária Dorothy Stang, 73, foi emboscada em Anapu, no interior do Pará — um a atingiu na cabeça; cinco, no corpo. Uma testemunha relatou que, diante dos algozes, ela ergueu a Bíblia e declarou: “Eis a minha arma!”.
Antes tombar naquela estrada rumo à gleba Esperança, Dorothy recitou em voz alta um versículo do Evangelho de Mateus sobre a justiça divina: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos.” Logo após os disparos, os assassinos fugiram, deixando seu corpo estendido no chão da floresta que ela tanto tentou proteger.
Duas décadas depois, a justiça ainda parece uma realidade distante em Anapu e a reforma agrária – uma das suas bandeiras – não foi feita. Dezenas de assassinatos em conflitos agrários seguem impunes. Além de Dorothy, os nomes de outras 19 pessoas mortas na região estão registrados ao lado da cruz onde ela foi sepultada, mas nenhum dos casos resultou em punição.
“A situação está do mesmo jeito, se não pior”, lamenta a irmã Jane Dwyer, uma das sucessoras de Dorothy na luta pela igualdade na distribuição de terras e proteção da Amazônia.
De Ohio para Anapu
Dorothy Mae Stang, uma religiosa norte-americana, foi assassinada em 2005, no contexto da sua luta pela regularização de terras para trabalhadores rurais e sua resistência à violência de grileiros, madeireiros e fazendeiros. Membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ela dedicou a vida à defesa dos mais vulneráveis, denunciando a exploração e o desmatamento na Amazônia.
Nascida em 1931, em Ohio, Estados Unidos, ingressou na vida religiosa aos 16 anos, na congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, focada na educação dos pobres e nos princípios de simplicidade, obediência e caridade. Desde jovem, aprendeu a lidar com a terra e sonhava em ser missionária, algo que, em 1948, escreveu em sua aplicação para a ordem: “Quero ser missionária na China”. No entanto, o destino a levou ao Brasil.
Chegou ao país em 1966, dois anos após o golpe militar, e inicialmente trabalhou em Coroatá, no Maranhão. Na década de 1970, foi transferida para a região da Transamazônica, no Pará. Nesse período, a ditadura militar incentivava a ocupação de terras por fazendeiros do sul, resultando em desmatamento e exclusão social. Dorothy intensificou sua atuação, combatendo a violência e as injustiças no campo contra os trabalhadores rurais locais.
Nos anos 1970, com a criação da CPT, Dorothy enfrentou repressão. A violência contra religiosos adeptos da Teologia da Libertação e trabalhadores rurais aumentou, e ela viu colegas serem perseguidos, presos e torturados. Seu nome chegou a figurar em listas de suspeitos comunistas.
Ironicamente, sua execução ocorreu em 2005, em um momento de otimismo político para a democracia brasileira, durante o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Mesmo em um cenário de avanços institucionais, a violência no campo persistia — e foi essa luta, a favor dos pobres e da floresta, que fez de Dorothy Stang um alvo.
Justiça
Hoje, duas décadas depois do crime, quase todos os condenados estão fora da cadeia. Foram condenados os pistoleiros confessos Rayfran das Neves Sales e Clodoaldo Batista; além dos fazendeiros Vitalmiro Bastos de Moura (Bida) e Regivaldo Pereira Galvão (Taradão), que atuaram como mandantes.
Rayfran das Neves foi condenado a mais de 25 anos de prisão e chegou a cumprir parte da sentença em regime domiciliar, mas em 2014 foi preso novamente por outro crime, além de envolvimento com tráfico de drogas. O segundo acusado, Clodoaldo Batista, recebeu 17 anos de prisão, mas foi libertado em 2012.
Os fazendeiros apontados como mandantes foram condenados a 30 anos. Bida, que teria oferecido R$ 50 mil pela morte da missionária, foi inicialmente condenado à prisão, mas depois teve o regime alterado para domiciliar, o que gerou controvérsias. Galvão obteve habeas corpus, e aguarda novas decisões judiciais.
Outro nome, Amair Feijoli da Cunha (Tato), que intermediou o crime, também foi condenado, mas sua sentença foi modificada ao longo do tempo. Após ser libertado, foi preso novamente em 2023 pela Polícia Federal por ocupar terras públicas em áreas florestais durante duas operações no Acre e Amazonas, e permanece detido.
Anapu, “faroeste brasileiro”
Os conflitos fundiários em Anapu, no Pará, começaram na década de 1970 com a construção da rodovia Transamazônica e os projetos de colonização do governo militar. Enquanto a ditadura favorecia pequenos agricultores em outras áreas, em Anapu beneficiava fazendeiros ligados ao setor madeireiro, algo que se perpetuou mesmo após a redemocratização. Isso resultou em grilagem e intensificação dos conflitos agrários na região.
Segundo o Censo do IBGE de 2022, Anapu abriga cerca de 28 mil habitantes em um território de 11,9 mil km² — uma área quase sete vezes maior que São Paulo (SP), com 11,4 milhões de habitantes. Esses números evidenciam porque a região é frequentemente chamada de “faroeste brasileiro”, onde a disputa por terras em enormes extensões se dá em meio à impunidade e à violência.
As tensões ali se intensificaram nos anos 1990 e 2000, com a luta pela reforma agrária e a atuação da Comissão Pastoral da Terra. Dorothy Stang tornou-se um dos principais nomes desse movimento. Desde então, os conflitos persistem, marcados por grilagem e desmatamento. Outros dilemas se somam, como os impactos da mineração e dos agrotóxicos usados na lavoura, principalmente de soja, que impedem outros cultivos.
Atualmente, três assentamentos estão no foco das tensões: o projeto de assentamento (PA) Pilão Poente 2 e 3 (que sobrepõe a Fazenda Sombra da Mata) e os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Virola-Jatobá e Esperança — era para este último que Dorothy se deslocava quando foi morta na emboscada.
Um assentamento é uma área regularizada para famílias de reforma agrária com posse legal da terra, enquanto um acampamento é uma ocupação temporária e precária, sem garantia de legalização. Já o PDS, defendido pela missionária, é uma modalidade de assentamento rural criada pelo Incra nos anos 1990, visando equilibrar a reforma agrária com a preservação ambiental.
Dorothy atuou em defesa do PDS Esperança e no combate à grilagem e à violência na região. Hoje, o cenário no assentamento em que ela foi morta beira o de um faroeste, com divisões, ameaças públicas de morte e mortes misteriosas.
Um dos desdobramentos do conflito de terras na região de Anapu foi a controversa prisão de Padre Amaro, membro da CPT. Ele é acusado de associação criminosa, ameaça, extorsão, invasão de propriedade e lavagem de dinheiro, e apontado como líder de uma organização criminosa que ocupa terras na região.
Em 2019, porém, a principal testemunha de defesa do processo contra Padre Amaro foi assassinada. Marcio Rodrigues dos Reis trabalhava como mototaxista e foi acionado para levar um passageiro à zona rural de Anapu. Acabou esfaqueado no caminho.
Ameaças
“Mesmo após a morte de Dorothy, as ameaças continuam”, relata à DW a irmã Jane Dwyer. Ela diz não aderir a nenhum programa de proteção porque “a vítima é o povo; nós estamos aqui porque optamos”.
Na região, chamam de “consórcio da morte” um grupo de poderosos alegadamente ligados ao agronegócio e à política local que estariam por trás do assassinato de várias pessoas ao longo das últimas décadas.
Questionada sobre quem está por trás do “consórcio da morte”, Dwyer diz acreditar que são os mesmos que estavam por trás da morte de Dorothy. “Tem um limpador de área que está ameaçando o povo; querem limpar a área para os ‘sojeiros’, para os fazendeiros.”
“Existe um cemitério clandestino, com mais de dez corpos nunca identificados. Tudo é abafado e controlado. E não tem um sistema de comunicação para procurar, pesquisar as verdades e publicar. Aqui dentro há ameaças. Quem vai publicar aqui, será ameaçado”, afirma Dwyer.
Mortes por conflitos fundiários
No Brasil, os anos seguintes à morte de Dorothy não foram melhores para os defensores do meio ambiente. O país liderou o ranking de assassinatos de ambientalistas, com 342 das 1.733 mortes registradas de 2012 a 2021 — quase 20% do total, segundo dados da CPT.
Em 2023, os conflitos por terra alcançaram o maior número já registrado desde o início da série histórica, em 1985. Ao todo, foram assassinados nove trabalhadores sem-terra, quatro posseiros, três quilombolas e um funcionário público. Índigenas, com 14 casos, eram maioria entre as vítimas.
Um deles era Paulo Paulino Guajajara, o “lobo”, de 26 anos. Ele foi assassinado por madeireiros ilegais em uma emboscada quando preparava o encontro de lideranças na Terra Indígena Arariboia, no oeste do Maranhão.
“Até hoje não há um condenado”, afirma Railson Guajajara, amigo da vítima.
No centro de todas essas mortes estão a morosidade e incoerência da justiça, concordam juristas ouvidos pela DW.
Quanto à disputa pela terra, em 2025, ano em que se relembra duas décadas da morte de Dorothy Stang, mártir na luta pela reforma agrária no Brasil, o dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Paulo Rodrigues, classificou como “ridículo” o número de 1,5 mil famílias assentadas por ano durante o governo Lula.
E mesmo com o aumento de cerca de 6% no valor destinado à agricultura familiar no Plano Safra 2024/2025, o crédito para pequenos produtores é muito inferior ao do agronegócio, que concentra em torno de 85% do crédito total.
Para a missionária Jane Dwyer, o Brasil ainda não fez reforma agrária por “falta de vontade política”. “Quem manda no Brasil não são os pequenos, quem manda é o Congresso. E o Congresso é o agronegócio.”