Projeto que proíbe contratação com dinheiro público de artistas que façam apologia ao crime e às drogas avança em todo o país. Para especialistas, proposta tem caráter autoritário e serve apenas de palanque político.O projeto de vetar a contratação com verba pública de artistas que fazem apologia ao crime organizado e ao consumo de drogas, que se popularizou nas últimas semanas sob a alcunha de “lei anti-Oruam”, virou um cabo de guerra entre os que apoiam a medida e quem enxerga nela censura e criminalização de estilos ligados às periferias.

Apesar de o texto não citar nenhum artista ou gênero musical específico, a campanha é voltada contra o rapper carioca Oruam, “um dos grandes talentos da nova geração do trap e rap nacional”, como descreve a plataforma de streaming Spotify. Além de ser um dos músicos mais tocados no país, ele é filho de Marcinho VP, líder do Comando Vermelho, preso há mais de 20 anos por homicídio e tráfico de drogas.

O projeto foi apresentado em janeiro pela vereadora de São Paulo Amanda Vettorazzo e o deputado paulista Kim Kataguiri, ambos filiados ao União Brasil e integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), grupo de jovens políticos identificados como liberais e conservadores.

A proposta ganhou projeção após a vereadora criar um site onde é possível baixar o texto e usá-lo na íntegra. Desde então, o projeto foi protocolado em Câmaras de vereadores de ao menos 14 capitais, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Desde então, as buscas no Google pelo nome de Vettorazzo também dispararam, como é possível verificar na própria ferramenta de busca (Google Trends).

O site promovido pela vereadora paulistana começa com a assinatura do MBL, chama o projeto de “anti-Oruam” e afirma, em caixa alta, que “A maior guerra contra o crime organizado começa agora!”.

Componente político e eleitoral

A medida, no entanto, não traz novidades em relação à legislação existente, avaliam especialistas em direito ouvidos pela DW.

O Código Penal prevê nos delitos de apologia ao crime e de incitação à violência as situações visadas pelo projeto, explica Daniel Raizman, professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF). Se um agente público for acusado de usar dinheiro público para promover uma atividade criminosa, ele pode responder por improbidade administrativa, complementa.

Raizman dá exemplos para explicar as duas tipificações penais. Apologia ao crime ou ao criminoso trata de fatos passados. “Você não pode tratar um crime que aconteceu como algo positivo. Por exemplo, dizer que o atentado a faca contra Bolsonaro ‘foi ótimo’, que ‘teria sido um favor para a pátria matar Bolsonaro’, ou que o autor da tentativa de homicídio é um ‘herói’, isso é apologia ao crime ou ao criminoso”, ressalta.

O delito de incitação ao crime vale para o futuro, quando se incita publicamente a prática de um crime. “Por exemplo, quando eu vou a uma praça e falo ‘Vamos tomar o Planalto e vamos arrebentar o palácio do presidente’.”

Ambos são crimes de ação penal pública incondicionada, ou seja, se o Ministério Público for notificado sobre um deles, tem o dever de investigar e oferecer denúncia contra o autor, independentemente da vontade da vítima.

“Você não precisa de uma legislação municipal sobre esta temática, porque é evidente que nenhum agente público pode contratar alguém para praticar crimes”, conclui Raizman. “Acredito que esses projetos sejam mais para a tribuna, para aparecer, mas que em termos práticos não acrescentam absolutamente nada, senão uma tentativa de censura a determinados artistas em suas expressões.”

O professor de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fábio C. S. de Oliveira não enxerga na proposta uma afronta à liberdade de expressão, mas compartilha da visão de que a campanha pelo projeto está mais para uma estratégia de comunicação do que uma política pública.

“Eu não entendo que esse projeto seja uma restrição à liberdade de expressão, porque ele traz uma carga menor de novidade, já tem previsão legal sobre o que ele dispõe. O que talvez tenha sido a intenção da vereadora é deixar isso marcado. Talvez exista um componente político, eleitoral, eventualmente pode ser interessante para um grupo político deixar essa pauta marcada.”

Subjetividades

O projeto tem gerado críticas ao tentar impor que um artista deixe de ser contratado preventivamente, com base na expectativa de que ele vá cometer um crime. “Até onde você pode avançar no controle da liberdade de expressão? Se você se antecipa aos fatos, é censura”, defende Raizman.

No caso de Oruam, ele causou polêmica em 2024 ao usar, durante sua apresentação no festival Lollapalooza, uma camiseta com uma foto de seu pai e a palavra “liberdade”. “Meu pai errou, mas está pagando pelos seus erros e com sobra. Só queria que pudesse cumprir uma pena digna e saísse de cabeça erguida”, disse à época em suas redes sociais, onde acumula milhões de seguidores.

As letras de Oruam falam de vivências pessoais e retratam uma juventude atravessada por festas, drogas, jogo do tigrinho e violência policial, com fortes doses de objetificação da mulher. Fotos das tatuagens do artista circulam na internet – entre elas, há uma em homenagem a Elias Maluco, condenado pelo assassinato do jornalista Tim Lopes e chamado de “tio” pelo artista.

“Hoje estão direcionando os canhões a Oruam, digamos assim. Mas como ele há muitos outros, e toda uma linha cultural que tem se desenvolvido dentro dessa lógica de questionar o status quo, de expressar insatisfação contra a ordem pública e as políticas públicas”, lembra Raizman.

Oliveira pontua que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e não acoberta manifestações de apologia ou incitação a um crime. No entanto, identificar o que é apologia ou não em uma obra envolve questões subjetivas. “A rigor, mesmo que este projeto de lei seja aprovado, a pergunta permanece: a música do Oruam é apologia ao crime ou não?”

“Os legisladores partem do consenso de que a lei reflete o valor de todos, e não é bem assim. Tem grupos dentro da sociedade que têm valores diferentes e veem diferente. Para uns, por exemplo, a polícia se apresenta como garantidora dos direitos. Mas uma grande parte da população quando vê a polícia corre, porque para ela a polícia é o terror”, aponta Raizman.

O projeto ainda trata de apologia às drogas, tema que traz uma peculiaridade. “O uso de drogas, tomando por base uma decisão do Supremo Tribunal Federal, pode até não ser crime. O Supremo decidiu que o uso de maconha não se enquadra como crime e deixou em aberto para decisão futura o uso de outras drogas”, explica Oliveira.

No entanto, legisladores podem elencar algumas condutas que entendem que não devem ser fomentadas, por questões de saúde pública, por exemplo, complementa o professor.