Cármen, a única mulher presente, tem sido a voz mais sensata dentro desse “clube do bolinha” que é o julgamento mais importante da nossa história recente.Quando o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros sete réus (incluindo ex-ministros e militares) começou, minhas expectativas eram altas. Afinal, não é todo dia que a gente vê quem tramou contra a democracia ser julgado e muito provavelmente condenado. Mas, confesso, algo ali tem me deixado com um gosto amargo na boca. E talvez o que me incomode seja o clima de “vestiário” e de “brodagem” entre homens e as piadinhas que soam tão deslocadas em um momento tão importante da nossa história.

Talvez isso aconteça porque estamos, de fato, diante de um “clube do bolinha”, acostumado a privilégios e confraternizações com seus pares. Não sei se vocês repararam, já que isso é tão naturalizado que achamos normal, mas quase todos ali são homens e brancos: os acusados, os advogados e os ministros. Quase todos. Com exceção dela, a ministra Cármen Lúcia.

A magistrada é a ÚNICA mulher com posição de protagonismo no julgamento. E, coincidência ou não, ela tem sido a voz mais sensata dentro desse “clube do bolinha” que é o julgamento mais importante da nossa história recente. E, sem risos ou piadas, tem agido com a seriedade que a gente espera em um momento importante desses.

Até agora, Cármen já se destacou em dois momentos: no primeiro dia de julgamento, ela rebateu uma fala do advogado de Alexandre Ramagem, Paulo Cintra. A magistrada, que também é presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), corrigiu o advogado quando ele usou “processo eleitoral auditável” e “voto impresso” como sinônimos.

“Você repetiu como se fossem sinônimos, e não é. O processo eleitoral é amplamente auditável no Brasil e passamos por uma auditoria – para que não fique a ideia para quem assiste de que ele não é auditável”, afirmou a ministra.

No segundo dia do julgamento, o advogado Andrew Fernandes, que representa o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, enquanto fazia seu pronunciamento, afirmou várias vezes que seu cliente não tinha culpa na tentativa de golpe de Estado e que uma das razões disso seria o fato dele “ter tentado demover” Bolsonaro.

“Mas demover de quê?”, perguntou Cármen. A resposta: “De qualquer medida de exceção.” A pergunta simples fez com que o advogado dissesse em alto e bom som que Bolsonaro planejava, sim, “tomar medidas de exceção”, um eufemismo para golpe de Estado ou outros ataques à democracia e ao Estado de Direito.

Mansplaining

A explicação didática de Cármem Lúcia sobre o voto impresso fez com que ela fosse criticada e levasse “puxões de orelha” de juristas colunistas de jornal, que afirmaram, entre outras coisas, que a ministra teria “desrespeitado o advogado” por não ter falado no “momento adequado”.

Não, não é coincidência que esse tipo de “mansplaining” (quando um homem explica o óbvio para uma mulher) caia em cima justamente da única mulher ministra do STF. Mulheres, mesmo em posição de grande poder como Cármen, sempre acabam criticadas por “mau comportamento”.

Piada de sogra

É curioso e sintomático, mas, logo depois de Cármen Lúcia fazer a pergunta inteligente e rápida que fez um advogado admitir que Bolsonaro pensava em “medidas extremas”, o ministro Flávio Dino fez a seguinte observação para o advogado: “o seu telefone tocou, deve ser a sua sogra”. E todos riram.

É inacreditável, mas durante o julgamento mais importante dos últimos tempos, ministros e advogados faziam as velhas e machistas piadas de sogras.

Dino se referia a uma fala do advogado, que citou a sogra durante a apresentação da defesa de seu cliente no julgamento. Após a citação, Alexandre de Moraes participou, divertido, do diálogo: “A sua sogra fala isso ou as palavras dela são um punhal?”, ao que Andrew respondeu: “Não, não, não. Minha querida dona Zilda, tenho um amor profundo por ela.”

É vergonhoso, mas esse diálogo aconteceu no meio desse julgamento tão importante, e não vi nenhum jurista homem e branco reclamando de “falta de decoro” ou “inadequação”.

A própria Cármen Lúcia já comentou antes sobre esse machismo presente nas cortes brasileiras: “O Judiciário continua sendo muito preconceituoso, muito machista, que distingue, sim, homens e mulheres”, disse em 2023. Na época, houve uma campanha para que a ministra Rosa Weber, que se aposentou, fosse substituída por uma mulher negra. Não aconteceu.

E estamos aqui, assistindo a um julgamento histórico e que pode, sim, ser um exemplo para o mundo inteiro. Mas que é feito, ainda, por um “clube do bolinha”. Quantas piadas de sogra vamos ter que ouvir até o final do processo?

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.