Anulação da condenação do brasileiro na Espanha expõe, mais uma vez, os entraves enfrentados por vítimas de agressão sexual. Será que a palavra de um jogador famoso vale mais?Uma mulher demonstrar carinho e desejo por um homem antes de ser estuprada faz com que ela seja menos vítima de um crime do que se tivesse repelido o sujeito desde o início? Obviamente, não. E é até estranho que a gente precise explicar uma coisa dessas em 2025. Mas, infelizmente, parece que muita gente (inclusive autoridades da Justiça) ainda não entendeu isso.

Semana passada, tivemos mais um exemplo de como as acusações de estupro continuam sendo relativizadas e de como provar ser vítima de um ato desses ainda é complicado (ou quase impossível, dependendo das circunstâncias). Falo do caso do jogador Daniel Alves, acusado de estupro, que foi absolvido pelo Tribunal Superior de Justiça da Catalunha. Ele havia sido condenado a quatro anos e seis meses de prisão em fevereiro do ano passado, após ter sido acusado de estuprar uma jovem na boate Sutton, em Barcelona, em dezembro de 2022. Na sexta-feira passada (28/03), a sentença foi anulada. Ainda cabe recurso na Suprema Corte da Espanha.

Entre os motivos alegados pelos membros da corte, está o fato de, segundo eles, a suposta vítima não ter credibilidade ao se referir a fatos que poderiam ser verificados por meio de gravações de vídeo. Para a corte, “isso significava explicitamente que o que ela relatou não correspondia à realidade”. Detalhe fundamental: a suposta vítima diz que foi estuprada no banheiro do local e não havia câmeras ali. Ou seja, os membros do tribunal se referem a coisas que ela disse ter acontecido em outras áreas da boate, como a pista ou a porta. O que algo ocorrido fora do banheiro pode provar? De acordo com o jornal espanhol El Periodico, os dois passaram 16 minutos dentro de um banheiro sem câmeras. Quem pode dizer que não aconteceu nada de errado ali?

Relativizações

Não estou afirmando que Daniel Alves é culpado. Existe, sim, a presunção de inocência e não sou juíza do caso. O que acho, definifivamente, é que as investigações e os julgamentos de casos de estupro precisam parar de usar relativizações ou de procurar justificativas em comportamentos das vítimas, algo que a sociedade continua fazendo até hoje.

É absurdo que a Justiça espanhola cite o que câmeras de segurança de uma pista de dança ou da porta mostraram para determinar o que pode ter acontecido dentro de um banheiro. Se não tem câmera, o que vale é a palavra dos envolvidos. E me pergunto: será que a palavra de um jogador famoso como Daniel Alves tem o mesmo peso da palavra de uma jovem que ficou em uma festa com um jogador de futebol e pode ser tratada pejorativamente como uma “maria chuteira”?

Vale lembrar que a suposta vítima fez a denúncia logo após a noite em que afirma ter sido estuprada. Ela foi à polícia e foi examinada em um hospital, que encontrou sêmen do jogador. Já Daniel Alves mudou de versão três vezes. No início, ele falava que nunca tinha visto a mulher. Depois, ele afirmou que não teria dito a verdade para não “magoar” a esposa e que a relação teria sido consentida.

Esse é um comportamento normal entre esse tipo de homem tóxico: separar as “patroas”, as que merecem ser “respeitadas” das “outras”, com quem eles não se importam.

Mulheres que ficam com jogadores de futebol costumam ser vistas como interesseiras e “golpistas” e isso pode fazer com que agressões a elas sejam tratadas com menos importância. “Estou rindo e nem aí porque ela estava bêbada”, disse o ex -jogador Robinho em conversa com amigos com quem praticou o ato hediondo em Milão, na Itália, em 2013. Robinho, que está preso desde o ano passado, confiava na impunidade por ser um jogador famoso. E ele até tinha um pouco de razão nesse ponto. Uma prova disso é que ele ficou mais de dez anos de boas. Ele fugiu para o Brasil onde, por anos, viveu uma vida confortável e tranquila.

“Fazendo charme”

No domingo, o programa Fantástico, da Rede Globo, divulgou um caso de violência sexual que aconteceu no litoral de Santa Catarina e que nos mostra claramente que ter ficado ou não com um suposto agressor não prova nada. E de que, sem vídeo, é difícil provar algo.

No dia 23 de março, uma mulher beijou um homem em uma casa de espetáculos. Depois, ela diz que pediu um carro de aplicativos para ir embora com uma amiga. Durante a espera, disse que precisava ir ao banheiro. O acusado, o pedreiro Nathan de Siqueira Menezes, disse que a ajudaria e a acompanharia até o banheiro de um posto de gasolina ao lado do local. Resultado: ele a levou para um posto desativado, onde a arrastou para o banheiro. A câmera de segurança mostra que a vítima disse não pelo menos 11 vezes. Em depoimento, o homem disse que não havia forçado a vítima a nada e que, quando ela disse não, “estava fazendo charme”. Desesperador.

Será que a vítima conseguiria provar que foi estuprada se a cena não fosse gravada? Ou será que ele se defenderia falando que “beijou a moça na balada” e ainda assim seria inocentado? Não sabemos. Mas de uma coisa podemos ter certeza: é também pela dificuldade em provar que foram vítimas que muitas mulheres não denunciam.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.