Influenciadoras não acharam suspeito uma empresa russa recrutar jovens brasileiras e aceitaram fazer publicidade para rede acusada de tráfico de mulheresUma garota jovem e sorridente está dentro de um closet de luxo e sorri enquanto divide uma oportunidade “incrível” com as suas seguidoras: “Já imaginou fazer aquela viagem dos sonhos e ainda ser paga por isso?”. Ela continua, explicando que essa é uma oportunidade “surreal” de fazer uma viagem para a Rússia, em um “programa de intercâmbio” dirigido para “meninas de 18 a 22 anos”, que iriam trabalhar nas áreas de “hospitalidade, alimentação, produção e logística”.

Vários vídeos com variações do mesmo tema circularam nas redes sociais do Brasil na semana passada. Eles eram feitos por influenciadoras jovens e já diziam o suficiente para despertar suspeitas em qualquer pessoa que pensasse por alguns minutos. Quem, em sã consciência, não ligaria o alerta de “perigo” ao ouvir sobre um programa que recrutava na internet apenas garotas para trabalhar em um país em guerra, famoso por desrespeitar os direitos humanos?

Fábrica de drones de guerra

Bem, dezenas de influenciadoras brasileiras e seus agentes não acharam suspeito uma empresa russa recrutar meninas brasileiras jovens e aceitaram fazer “publi” para acusados de tráfico de pessoas.

O tal suposto programa de intercâmbio é o “Alabuga Start”, denunciado como um esquema de exploração onde meninas de países pobres, principalmente da África, são recrutadas nas redes sociais para trabalhar fazendo drones de guerra (!!).

Segundo um relatório da Iniciativa Global contra o Crime Organizado (Global Initiative against Transnational Organized Crime) publicado em maio, as jovens trabalhavam em condições indignas, manipulam produtos tóxicos e ficavam sujeitos a constante vigilância. Há relatos de que as meninas não podiam voltar para casa quando queriam, o que levou a empresa a ser investigada por tráfico humano.

É tudo distópico. Mas é uma história real. Reportagem da DW alemã de junho publicou depoimentos de garotas africanas que caíram no golpe do intercâmbio. Em entrevista, a mãe de uma jovem de 20 anos do Zimbábue contou que o programa se transformou em uma “armadilha mortal” e que sua filha teria tido “o passaporte retido, para que não fugisse.”

Ser vigiada e ter o passaporte confiscado é o roteiro básico de histórias que configuram tráfico humano. Se essa empresa realmente comete esse crime horrível, as influenciadoras que divulgam o esquema estariam aliciando vítimas. Grave assim.

Quando a verdade sobre o tal esquema de intercâmbio foi revelada e a história começou a viralizar, todos os vídeos foram deletados e algumas das influenciadoras seguiram o roteiro clássico de quem erra pesadamente e quer se safar: postaram vídeos usando roupas brancas, falando que não tinham intenção de cometer crime algum, que iriam “prestar mais atenção” e que isso “não se repetiria”. Falar que “não quis prejudicar ninguém” não resolve nada. Esse é um assunto sério, que não pode ser tratado como “um erro bobo”.

O mercado de influência movimenta bilhões. Não estamos falando de uma brincadeira de criança, mas de um trabalho muito bem pago, que de fato influencia pessoas e precisa ser feito com responsabilidade.

Jogo do Tigrinho

Quando o marketing de influência surgiu e se fortaleceu, temíamos que influenciadores aumentassem os distúrbios de imagem, as comparações e o consumo. Mas nos últimos anos, os perigos ficaram ainda mais sérios e escancarados. O Brasil vive uma epidemia de vício em jogos de apostas online estilo “Tigrinho”. Muitos desses jogos são divulgados por influenciadores irresponsáveis e gananciosos. Agora, o perigo sobe mais um degrau.

Em todos os países onde recruta meninas, a Alabuga Start usa as redes sociais e as influenciadoras para aliciar candidatas. Eles não são burros e sabem que esse é um marketing que realmente funciona. E é por isso mesmo que a irresponsabilidade (para dizer o mínimo) de algumas influenciadoras é tão perigosa, o que mostra que o mercado da influência precisa ser regulado.

O sonho de “morar na gringa” é uma fantasia que pode ser tão forte quanto o sonho de ganhar milhões no jogo, de um dia para o outro. Eu consigo entender que garotas jovens e sem dinheiro para realizar tal sonho possam cair em uma arapuca dessas. Triste e revoltante é ver que o Brasil ainda é um país visado por exploradores e que, em 2025, a aliciadora pode ser apenas mais uma blogueira que posta vídeos de maquiagem no TikTok.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.