23/10/2025 - 5:29
Realização de um sonho que me parecia tão impossível quanto o de ser Paquita se tornou realidade quando passei em concurso da USP. No entanto, minha felicidade ficou no quase.Quero começar esse texto parafraseando João Cabral de Melo Neto:
Somos muitos negros
Iguais em tudo na vida
Temos a mesma morte,
Banalizada a cada dia
Temos o mesmo sangue,
Derramado em cada esquina
E temos nossas poucas vitórias
Questionadas e inquiridas.
Cresci assistindo ao Xou da Xuxa e sonhando em ser Paquita, mas eu sabia que esse era um sonho impossível, porque eu sou preta. Não havia Paquita preta.
Desde a infância estava evidente para mim que havia papéis sociais que eu não poderia ocupar. Tive poucos professores negros, seja na educação básica, seja na universidade. Na pós-graduação, não tive nenhum. Ao longo da minha vida fui atendida por raríssimos médicos pretos. Não tive chefes negros… Para assumir alguns papéis sociais, eu precisaria alisar meu cabelo, prendê-lo, mudar quem eu sou, e até violentar o meu corpo.
Fui ensinada, na mídia, na escola e na igreja, que a África era um vazio cultural, onde só havia pobreza e fome.
A literatura negra me ressignificou
Apesar de tudo, foi na universidade que descobri que a África produzia literatura, e mais, boa literatura! Qual não foi a surpresa ao perceber que meus ancestrais tinham, ou melhor, têm uma história rica, várias culturas impressionantes e uma literatura?
Uma literatura pela qual me apaixonei. A paixão foi tanta que produzi uma tese de doutorado sobre a literatura da Guiné-Bissau que recebeu prêmio de melhor tese lá do outro lado do Atlântico!
A realização de um sonho que foi tirado de mim
Quando eu me inscrevi para o concurso para docente da Universidade de São Paulo (USP), 11 anos depois de concluir o doutorado e lecionando há 20 anos, eu só queria fazer o meu melhor, isso me bastava. Não imaginava que passaria em primeiro lugar. E, a despeito do que eu acreditava sobre mim mesma, passei.
A realização de um sonho que me parecia tão impossível quanto o de ser Paquita se tornou realidade. Eu estava aprovada para a melhor universidade do Brasil como docente! Eu ia me tornar professora da USP!
Entretanto, como já disse Emicida, “A felicidade do branco é plena / A felicidade do preto é quase”. A minha felicidade ficou no quase, bateu na trave, não se concretizou. O concurso foi anulado.
Se por um lado, eu me surpreendia com a minha própria aprovação, aqueles que não obtiveram o mesmo êxito que eu buscaram “justificar” meu sucesso, alegando que eu era amiga da banca. Afinal, de que outra maneira uma pessoa negra seria aprovada em primeiro lugar, no espaço social típico de pessoas brancas?
O pacto da branquitude reforça tal percepção ao duvidar do sucesso legítimo do negro. Frantz Fanon, por sua vez, explica muito bem minha falta de confiança. O colonialismo e o racismo, segundo ele, constroem uma autoimagem do negro que o leva a duvidar da própria capacidade.
Quando expus minha história na internet, já desacreditada e resignada, me surpreendi com a quantidade de histórias semelhantes à minha. De repente, a solidão se tornou coletividade. A descrença virou fé. E a resignação se transformou em coragem. Descobri que a história não precisa terminar em morte, porque juntos, “a gente combinamos de não morrer”.
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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1.
Este texto foi escrito por Erica Cristina Bispo, Doutora em Letras Vernáculas e professora do IFRJ – Campus Pinheiral, e reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.