Nascido há 100 anos, pensador anticolonial Frantz Fanon apontou que os negros vivem num estado de desumanização radical. Uma desumanização que explica porque a polícia brasileira segue matando a juventude negra.Um tiro na nuca.

Nunca saberemos se nos segundos que antecederam sua morte, o marceneiro Guilherme Dias Santos, 26 anos, entendeu o que estava acontecendo. Tampouco saberemos se os momentos mais marcantes da sua vida passaram como um breve filme antes dele tombar, sem vida. Isso porque um policial que estava de folga supôs que Guilherme era um criminoso que estava fugindo da cena do crime e resolveu atirar pra matar.

Em 4 de julho, Guilherme corria para não perder o ônibus. Estava saindo do seu trabalho em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, e não queria chegar tarde em casa, onde vivia com sua esposa, com que começava a construir a vida, sonhar compartilhado, ansiar a paternidade, dentro que uma conduta marcada pela retidão no trabalho, dignidade e a fé numa vida possível.

Mas nada disso parecia importar nas mais de 8 horas que seu corpo ficou na rua, ou na forma como parte da polícia tratou seus familiares quando eles faziam as tratativas de reconhecimento e sepultamento de Guilherme. E sabem por que o corpo de Guilherme foi mais um corpo negro estendido no chão? Porque, como bem disse sua espoca, ele era um homem negro, e isso parece ser razão mais do que justa para tomar um tiro na nuca.

Um tema exaustivo

Não é de hoje que a bestialidade é a régua que rege vidas negras, sobretudo quando estamos tratando dos órgãos de repressão do Estado. Já perdemos as contas de quantas ações truculentas e racistas da polícia brasileira resultaram na morte de pessoas negras, pouco importando se essas pessoas eram ou não criminosas – ainda que a possível autoria de crimes seja a principal justificativa utilizada pela polícia para tentar suavizar o despreparo e o racismo que a ordena há tanto tempo, mesmo num país que não tem pena de morte.

Esse é um tem recorrente nessa coluna. Exaustivo, enlouquecedor, e que parece não ter fim. Uma vivência organizada no racismo. Mas um racismo que, cada vez mais, precisa ser melhor compreendido. E um dos caminhos possíveis e seguros na busca dessa compreensão passa, necessariamente por Frantz Fanon (1925–1961) e aquilo que ele chamou de “zona de não ser”, uma categoria fundamental para ajuda a elucidar a pouca ou nenhuma importância que as vidas negras parecem ter (a não ser para as próprias pessoas negras).

A trajetória de Frantz Fanon

Nascido há exatamente um século na ilha caribenha da Martinica, em 20 de julho de 1925, Frantz Fanon foi um psiquiatra, filósofo e militante político, cujo pensamento exerceu profunda influência nos estudos pós-coloniais, nos movimentos de libertação africanos e nas teorias críticas do racismo.

Formado em medicina e psiquiatria na França, Fanon foi um crítico ferrenho do colonialismo europeu, especialmente durante seu trabalho na Argélia, onde presenciou os efeitos devastadores da opressão colonial sobre a saúde mental dos colonizados. Nos seus breves 36 anos de vida, Fanon produziu obras fundamentais, como Pele Negra, Máscaras Brancas (1952) e Os Condenados da Terra (1961), trabalhos nos quais ele denunciou as dimensões estruturais e psicológicas do racismo.

Em meio a essas análises, Fanon desenvolveu o conceito de “zona do não ser” que, infelizmente, de aplica às vidas negras (de maneira geral), e vidas negras brasileiras de maneira mais específica.

Dito de forma bem resumida, essa categoria apresenta que, em meio ao racismo, as pessoas negras vivem num estado de desumanização radical, ocupando um não-lugar na estrutura do que se entende como ser humano.

É essa negação da humanidade negra que justifica que homens como Guilherme Santos sejam assassinados. Ou que mulheres como Claudia Silva – arrastada por uma viatura no Rio de Janeiro em 2014 – sejam violentamente mortas em plena luz do dia.

É essa mesma negação que explica porque a polícia brasileira segue matando a juventude negra em todo o território nacional. Estatísticas que comprovam por A+B que o racismo não é um assunto que parece importar á Segurança Pública do Brasil. Afinal, segurança parece ser um atributo àqueles que gozam da humanidade plena. Na perversidade do jogo racista, os negros são tratados como os sujeitos que colocam a segurança pública em risco.

Nesse século de existência de Fanon, seus escritos continuam não só atuais, como urgentes. Portanto, é fundamental comemorar esse pensador negro caribenho, pois ele é um homem incontornável na compreensão das estruturas do racismo. É preciso, pois, ler Fanon. Uma tarefa que tem se tornado mais acessível nos últimos anos, quando editoras brasileiras como Ubu, Boitempo, Todavia, Veneta e Zahar vêm relançando e/ou publicando obras de sua autoria e que, sabedoras de sua importância, estão organizando para publicar textos inéditos do autor na comemoração do seu centenário.

Mas há outra dimensão fundamental na perspectiva e crítica que Fanon lançava sobre o mundo: ele também era um homem de ação. Acreditava e defendia que não havia luta antirracista sem prática antirracista. Um intelectual que defendia que o discurso era importante, mas a práxis era transformadora.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.