O horror que cerca a prática do aborto é tão grande no Brasil que não parece impossível que uma mulher tenha morrido punida por um suposto procedimento que ela nunca fez.No dia 8 de setembro, a chefe de cozinha Paloma Alves Moura, de 46 anos, procurou um pronto-socorro em Olinda, Pernambuco, sentindo fortes dores e apresentando hemorragia uterina. Depois de passar o dia sangrando, ela morreu de parada cardiorrespiratória. Segundo amigas que acompanhavam a chefe, funcionários do hospital a teriam tratado com negligência por acharem que ela sofria consequências de uma tentativa de aborto.

O Hospital e Maternidade Tricentenário, onde Paloma foi atendida, nega essa versão e afirma que a paciente esperava remoção para um centro de saúde que estivesse preparado para lidar com casos de maior complexidade.

A versão das amigas de Paloma e suas amigas ainda precisa ser confirmada. Mas uma coisa é certa: ela não estava grávida e não tinha tentado um aborto caseiro. A mulher sofria de endometriose e tinha um mioma uterino.

Não podemos afirmar com certeza que ela foi tratada com negligência porque funcionários do hospital desconfiaram de um aborto, mas, ao mesmo tempo, também nao é impossível imaginar um cenário desses em um país onde o aborto (e, consequentemente, a vida das mulheres) é tratado com fanatismo e ódio cego.

Mullheres que fazem abortos ilegais no Brasil aindas estão sujeitas a todo tipo de descaso e violência. Muitas ainda são punidas com a morte por optarem por não seguir com uma gravidez. O horror que cerca a prática do aborto é tão grande no país que não parece impossível que uma mulher tenha morrido punida por um suposto aborto que ela nunca fez.

Paloma não merecia ter morrido assim. E, claro, mulheres que são vítimas de sequelas de aborto induzido também não. E elas são muitas. De acordo com pesquisa realizada pela rede Gênero e Número, 483 mulheres morreram por aborto no Brasil entre 2012 e 2022. No caso de “falhas na tentativa de aborto”, uma mulher vem a óbito a cada 28 internações em hospitais públicos.

Essas mortes, é importante lembrar, atingem principalmente mulheres de baixa renda, pretas e pardas.

Como todo mundo sabe (mas muitos fingem que não), mulheres de classes mais altas e maior poder aquisitivo fazem aborto no Brasil em clínicas ilegais particulares sem grandes problemas. Conheço muitas mulheres que já fizeram. Nenhuma delas teve complicações ou morreu. Aborto seguro no Brasil é, sobretudo, uma questão de classe, o que é um disparate que precisa acabar.

Este é um assunto de saúde pública. Estamos falando de impedir que mulheres morram. Simples assim.

Luz no fim do túnel?

A descriminalização do aborto é urgente porque mulheres precisam parar de morrer. Mas será que podemos ter esperanças?

Semana passada, vimos uma luz, mesmo que pequena, no fim do túnel. Na sexta-feira (17/10), o ministro Luís Roberto Barroso, antes de se aposentar do Supremo Tribunal Federal (STF), votou sim pela legalização do aborto até 12 semanas de gestação. A votação tinha sido aberta pela ministra Rosa Weber em 2023, também antes de se aposentar. O processo foi suspenso depois do voto de Barroso e precisa ser novamente reaberto, o que depende do atual presidente do Supremo, Edson Fachin.

Em seu voto, Barroso disse o óbvio, uma frase que nós, mulheres, repetimos há séculos: “Se os homens engravidassem, o aborto já não seria tratado como crime há muito tempo”. Isso acontece, entre outras coisas, porque ainda são os homens, em grande maioria, que fazem e votam as leis, certo?

Apesar desse fato histórico e positivo, é preciso estar atento. Os poucos direitos das mulheres, conquistados com muito custo, continuam ameaçados, ainda mais em época de avanço da extrema direita e do fundamentalismo.

Ao mesmo tempo em que a pauta caminha, muito lentamente, no STF, a Comissão dos Direitos Humanos do Senado aprovou, também na semana passada, um Projeto de Lei que proíbe o aborto após a 22ª semana de gestação mesmo em casos de anencefalia, estupro e quando houver risco de vida para a gestante. Sim, eles querem que mulheres que foram estupradas sejam punidas novamente, e que aquelas que correm risco de morte sejam obrigadas a gerar fetos incompatíveis com a vida. Isso mostra uma crueldade e um descaso pela vida das mulheres sem limites.

O texto ainda precisa ser aprovado por outras comissões antes de ir a plenário. Mas só o fato de que existem políticos pensando em submeter mulheres a essa tortura já mostra o quanto o direito à vida das mulheres continua ameaçado e sendo tratado com desdém.

O que querem, que mais mulheres sangrem até a morte? E sim, essas pessoas se dizem protetoras da vida, mas desprezam completamente a vida e a dignidade de mulheres, principalmente das mais pobres e vulneráveis.

É preciso estar atento e forte.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.