Antonio Pitanga alcançou um lugar que poucos homens negros puderam alcançar no Brasil. E foi justamente desse lugar que ele sonhou e executou o filme “Malês”.”Estreia nesta quinta-feira (02/10) o filme Malês de Antonio Pitanga”. Mas se estivéssemos definindo a melhor manchete para essa notícia, poderíamos também dizer: “Nesta quinta, Antonio Pitanga estreia seu filme Malês”. Isso porque, nesse caso, tão importante quanto o filme é o fato dele ter sido concebido e dirigido por Antonio Pitanga.

Há 190 anos a cidade de Salvador foi palco da maior rebelião de escravizados do Brasil. Em janeiro de 1835, homens e mulheres escravizados nascidos no Brasil como africanos de origens diferentes, sob liderança de africanos islamizados conhecidos como malês, decidiram que a escravidão deveria acabar, e colocaram suas vidas em risco. Na época, Salvador era a terceira maior cidade escravista das Américas (perdendo apenas para o Rio de Janeiro e Havana) e já havia sido palco de outras insurreições de escravizados, mas nenhuma com a envergadura do Levante dos Malês.

Uma sublevação que nos ajuda a entender as diferentes origens dos africanos escravizados no Brasil, e como isso foi ressignificado sob o signo da escravidão. Que fala sobre o peso que o escravismo teve no funcionamento da maior parte das cidades brasileiras daquele período, já que eles e elas eram a força motriz que faziam a vida urbana funcionar, desde o descarregamento de mercadorias no porto, até a execução de atividades que passavam pela venda de quitutes e comidas e chegavam à alfaiataria e produção de sapatos.

Um levante que nos conta sobre o peso e a violência da escravidão amplamente pactuada pelas elites (brancas em sua maioria), e pela dificuldade em fazer com que a liberdade conquistada a duras penas fosse de fato usufruída. Fala de religiosidade, ou melhor, de religiosidades e de laços de amizade, de família e companheirismo que foram criados a despeito dos horrores da escravidão.

E por conta dessas muitas camadas de história revolvidas pelo Levante dos Malês, fico pensando em quantos milhões de brasileiros e brasileiras (de diferentes gerações) passaram pelos bancos escolares e, em nenhum momento, ouviram falar dessa rebelião. E lembro que esse silêncio – como tantos outros que se impõem sobre as ações negras na história brasileira – tem “a cara do Brasil”, um país que, como já foi dito aqui inúmeras vezes, insiste em fazer acreditar que é uma nação pacífica e sem racismo.

Duas mentiras que nos contam há séculos. E, por isso, devemos comemorar que Antonio Pitanga decidiu que já era a hora de contar parte dessa história, provocar o Brasil e lidar com suas fissuras.

Lugar que poucos homens negros puderam alcançar

E me pego pensando se haveria outra pessoa, além de Antonio Pitanga, que pudesse trazer o Levante dos Malês para as telas do cinema brasileiro.

Como ele mesmo gosta de enfatizar, Antonio Luiz Sampaio nasceu no Pelourinho, em Salvador, na Bahia, no dia de Santo Antônio de 1939. Sua vida, como a de tantos meninos negros da época, não foi fácil, assim como não foi a de sua mãe, uma mulher negra trabalhadora, que não conseguiu viver o suficiente para ver se filho se tornar um dos mais importantes atores brasileiros, mas que lhe deu “régua e compasso”.

Ele fez da arte seu ganha pão, sua salvação, mas também a sua forma de estar no mundo. Antes mesmo de completar 20 anos, Antonio teve seu primeiro teste profissional, depois de experiências com teatro feito nas periferias de Salvador, boa parte deles tratando de temas religiosos. Ao estrelar o filme Bahia de Todos os Santos (1960), Antonio Luiz Sampaio se tornou Antonio Pitanga.

Rapidamente ele virou um dos nomes e rostos mais importantes do Cinema Novo, participando de filmes marcantes como Barravento (1962), de Glauber Rocha, Ganga Zumba (1963) e A Grande Cidade (1966), de Cacá Diegues. Sua trajetória consolidou-se na interpretação de personagens que revelavam a complexidade do povo brasileiro, num momento em que havia um interesse deliberado em pasteurizar os brasileiros, sobretudo os negros e marginalizados.

Ao longo das décadas, ele construiu uma carreira sólida e respeitada, também transitando pela televisão e pelo teatro. Antonio Pitanga alcançou um lugar que poucos homens negros puderam alcançar no Brasil. E foi justamente desse lugar que ele sonhou e executou o filme Malês.

Um sonho que demorou 29 anos para se concretizar, que atravessou todo o racismo que nos ordena (e que muito tempo definiu que o lugar de negro mesmo no cinema só seria a senzala), o desmonte na área da cultura, uma pandemia global. Mas que vingou.

Arte como arma para romper o silêncio

Vingou e honrou o menino que nasceu no Pelourinho, que tinha muitos caminhos possíveis para contar os enredos do Levante dos Malês, mas que decidiu fazê-lo desafiando o pressuposto de toda e qualquer sociedade escravista: Pitanga produziu um filme que esmiuça a humanidade de boa parte dos sujeitos envolvidos na rebelião.

Com a consultoria geral de João José Reis – um dos nossos maiores historiadores e, sem dúvida, o grande especialista no Levante dos Malês – Pitanga fez desse episódio da luta negra por liberdade, um mote para gritar em alto e bom som que, apesar da violência e de toda a tentativa de desumanização da escravidão (e também do pós-abolição), as vidas negras seguiram. Com delícias, muitas dores e interditos… seguiram.

E, se compreender o Brasil exige reconhecer as trajetórias negras como protagonistas de nossa história, Antonio Pitanga – na sabedoria dos seus 86 anos – demonstra que a arte é uma das armas mais poderosas para romper o silêncio que nos impediu por tanto tempo de enxergar a vida negra em cena. Sim: teremos nossas noites de Glória!

__________________________________

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.